A obsessão pelo segredo e a teimosia em manter secreto aquilo que em democracia deve ser público é uma marca do atual partido socialista.
Já vimos António Costa ‘magoado’ pelo facto de a Procuradora Geral da República ter optado pela verdade, ao decidir tornar pública uma investigação judicial ao primeiro-ministro que o próprio preferia ter mantido em segredo.
Percebeu-se que para António Costa - quase 50 anos depois do 25 de abril - a decisão de abrir uma investigação judicial a um primeiro-ministro deveria ser, neste caso e nesta fase, sonegada à opinião pública, mantida em segredo, isto é, permanecer clandestina. Ninguém tinha nada que saber. Tudo deveria ficar limitado aos diretamente implicados pela investigação. Aos portugueses, para já, a informação deveria ser escondida.
Por outras palavras, António Costa gostava que a Procuradora Geral da República tivesse protegido o primeiro-ministro, como se as investigações aos chefes do Governo, sob a alçada do Supremo Tribunal de Justiça, fossem coisa corrente, trivial e de nenhuma importância política e judicial.
Após cinco décadas de democracia, um primeiro-ministro socialista ensaia a tese da clandestinidade de um processo sobre si próprio. Percebe-se que em ditadura, processos judiciais (e outros) sobre os titulares dos cargos públicos sejam abafados e escondidos à sociedade. Mas, em democracia, é espantoso que alguém - republicano, laico e socialista - o defenda.
E não foi o primeiro a fazê-lo. Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República também criticou a Procuradora pelo mesmo facto e quase exigiu uma celeridade com a Operação Influencer que nunca lhe viramos reivindicar noutros casos de semelhante interesse público.
Imagine-se, por absurdo, que a Procuradora Geral da República tivesse optado por esconder a verdade. O que se diria então sobre a promiscuidade entre o poder político e o poder judicial?
Lucília Gago pode não ter uma obrigação legal de divulgar a investigação a um primeiro-ministro, mas a natureza democrática do regime não lhe pede menos do que isso. A ética e a consciência estão acima da lei.
Investigações judiciais clandestinas sobre o chefe de Governo, ainda por cima num quadro que envolvia ministros e o seu próprio chefe de Gabinete, são absolutamente incompatíveis com os regimes democráticos.
Agora, a propósito da compra pelo Estado da insignificância de 0,24% do capital dos CTT, lá veio o coro do costume a reivindicar… o segredo.
As revelações surgem aos bochechos, sob a pressão dos factos e não de forma clara, transparente e cristalina como é suposto acontecer sobre estes temas em qualquer regime democrático.
Pedro Nuno Santos veio primeiro dizer que não era ele, na altura ministro das Infraestruturas, que dava instruções ao ministro das Finanças sobre a compra de ações.
Depois, pressionado pelas notícias, o novo líder do PS regressou a terreiro para dizer que afinal conhecia a operação e até com ela concordava.
Pena que Pedro Nuno Santos não tenha dito se a compra destes 0,24% do capital dos CTT foi da sua iniciativa e se foi ele a convencer o Governo, ministro das Finanças incluído, sobre a bondade da proposta.
Depois de Pedro Nuno Santos surgiu António Costa. E o primeiro-ministro explicou que embora as acções tenham sido compradas em bolsa e por isso de forma pública, o Governo tinha decidido não anunciar a aquisição para que as ações dos CTT não começassem a subir de imediato.
O primeiro-ministro assumiu portanto os motivos pelos quais a decisão da compra foi mantida em segredo. Não explicou, porém, que o objetivo falhou, porque de facto as ações valorizaram-se pouco depois e de modo substancial.
Mas António Costa deixou por explicar outro ponto bem mais importante. Se não divulgou previamente a decisão de comprar ações dos CTT para não valorizar a cotação em bolsa, porque não o fez depois?
Uma vez consumada a aquisição de 0,24% do capital - de resto, de fraca expressão - por que razão, não informou posteriormente a opinião pública?
Os eleitores não têm o direito de avaliar e discutir as opções estratégicas do Governo quanto à participação do Estado em empresas privadas e que foram privatizadas no quadro de um acordo com a troika que o partido socialista solicitou e subscreveu?
Decidiu António Costa manter tudo em segredo, para evitar estragos políticos, receando que se dissesse que tal aquisição teria sido feito a reboque dos parceiros da geringonça?
Qualquer que seja razão, nenhum Governo pode subtrair-se ao escrutínio democrático das suas decisões.
Imagine-se que era Passos Coelho (eterno responsável por qualquer contratempo que os próprios socialistas ao longo destes oito anos criaram) a defender que uma investigação judicial sobre si próprio, enquanto primeiro-ministro, devia ser escondida aos portugueses?
Imagine-se que o Presidente da Assembleia da República afeto a Passos Coelho viesse zurzir a Procuradoria Geral da República por não guardar segredo da decisão dessa mesma investigação?
Imagine-se ainda que o mesmo Passos Coelho decidia que o Estado comprava ações de uma empresa em bolsa sem nunca dar cavaco - nem antes nem depois - à opinião pública portuguesa?
Podemos imaginar muito mais. Mas o ponto mais importante é a forma como em democracia os responsáveis políticos - sejam eles de esquerda ou de direita - devem prestigiar as instituições, sujeitando-se ao escrutínio das respetivas decisões.
Cinquenta anos depois do 25 de Abril é preciso lembrar que em democracia - salvas as devidas exceções do segredo de Estado ou de justiça, quantos eles se justificam - a verdade e a transparência não podem ser geridas à medida da conveniência política do momento.
Cinquenta anos depois do 25 de abril é preciso lembrar que as investigações judiciais aos membros do Governo e ao próprio primeiro-ministro ou as decisões do Estado de intervir na economia não podem ser abafadas nas gavetas dos gabinetes dos decisores. Esse tempo passou ou devia ter passado.
É preciso lembrar, refrescar a memória, mudar padrões de atuação e sobretudo atualizar princípios sem os quais nada faz sentido. Quem não se rege pela verdade, banaliza a mentira, encarada como truque legítimo inspirado por espíritos (supostamente) superiores, cujo único objetivo é enganar jornalistas, opositores e eleitores.
Não deveria ser necessário fazê-lo, mas é preciso recordar tudo isto. É pena.