Os "milhares de pessoas" que vivem em habitações sem condições e a exploração de trabalhadores migrantes do setor agrícola são problemas destacados em relação a Portugal no relatório da Amnistia Internacional (AI) 2022/23 divulgado esta terça-feira.
A organização de defesa dos direitos humanos refere ser igualmente preocupante a "brutalidade policial" no país, problema que tem vindo a assinalar há vários anos, assim como o facto de continuarem a ser "inadequadas as salvaguardas contra a violência baseada no género".
Em declarações à Renascença, Pedro Neto, da secção portuguesa da AI, revela que, “esta questão da habitação afeta desproporcionalmente as pessoas que etnia cigana e afrodescendentes também devido à discriminação em que vivem e por causa das situações de maior pobreza", dando como exemplos ocorridos em 2022, "desalojamentos forçados, nomeadamente na Trafaria, no Bairro do Segundo Torrão”.
O Relatório 2022/23 da Amnistia Internacional: O Estado dos Direitos Humanos no Mundo assinala ainda que Portugal falha também no combate à crise climática e à degradação ambiental.
"O governo (português) tomou medidas insuficientes para melhorar as condições habitacionais e garantir habitação acessível suficiente, apesar dos dados divulgados no final de 2021 mostrarem que mais de 38.000 pessoas precisavam de casa", indica o relatório, referindo também "relatos de despejos forçados" que deixaram algumas pessoas sem-teto, uma situação que, segundo a AI, "afetou desproporcionalmente ciganos e afrodescendentes".
Em relação aos direitos dos refugiados e migrantes, o trabalho recorda as reportagens jornalísticas que "expuseram condições de trabalho abusivas e habitações inadequadas" de empregados no setor agrícola na região de Odemira, principalmente de países do sul da Ásia.
"Em junho, o Grupo de Peritos sobre o Tráfico de Seres Humanos (do Conselho da Europa), que visitou o país em 2021, notou que o tipo de exploração mais comum continuava a ser a laboral, afetando especialmente os setores agrícola e de restauração".
Pedro Neto refere que esta exploração laboral está implementada em áreas onde a pressão é maior, nomeadamente na "agricultura superintensiva e onde há muito turismo e necessidade de trabalho sazonal por causa do turismo".
"É necessário pensar a política de imigração de forma global. Isto
é, não se pode só facilitar a entrada das pessoas e facilitar os vistos. Tem de
se criar condições para as pessoas virem trabalhar, mas quando vêm trabalhar,
vêm também viver”, acrescenta.
A organização com sede em Londres indica, por outro lado, que em julho de 2022 e após a revisão periódica de Portugal, o Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher considerou insuficientes quer a legislação, quer os serviços para lidar com a violência de género contra as mulheres, expressando preocupação "com as taxas de abandono escolar entre as raparigas ciganas devido a casamentos infantis e/ou forçados e gravidez precoce", questões que, observou, "eram muitas vezes ignoradas pelas autoridades".
Amnistia alerta para consequências das alterações do clima
Sobre as alterações climáticas, a AI assinala que "mais de 1000 pessoas morreram de causas relacionadas com ondas de calor extremas" em Portugal no ano passado, bem como o facto de 60,4% do país ter registado seca severa e 39,6% seca extrema.
Segundo a ONG, o relator especial da ONU para os Direitos Humanos e o Meio Ambiente declarou em setembro, após uma visita a Portugal, que "as autoridades precisavam de acelerar o ritmo de ação para enfrentar, em particular, a poluição do ar e a gestão de resíduos e prevenir incêndios florestais".
O relatório da AI sobre o ano passado realça "a existência de dois pesos e duas medidas em todo o mundo em matéria de direitos humanos e a incapacidade da comunidade internacional se unir de forma consistente na proteção dos direitos humanos e dos valores universais".
"A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada há 75 anos, a partir das cinzas da Segunda Guerra Mundial. A sua essência é o reconhecimento universal de que todas as pessoas têm direitos e liberdades fundamentais. Mesmo que a dinâmica do poder global esteja um verdadeiro caos, os direitos humanos não podem ser perdidos na desordem. Por outro lado, são os direitos humanos que devem guiar o mundo à medida que se multiplicam os contextos cada vez mais instáveis e perigosos. Não podemos esperar que o mundo volte a arder", diz Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional, citada num comunicado de divulgação do relatório.
Violência policial e prisões outra vez a falhar
Nas declarações à Renascença, Pedro Neto refere que, mais uma vez, as prisões portuguesas chumbam no crivo da Aministia Internacional.
“Tem de haver um olhar para as prisões, como um espaço de justiça, de punição de quem cometeu um crime, mas também de recuperação, de reparação, de reinserção social. E nesse aspeto, as prisões têm falhado continuamente, claro, e algumas prisões não cumprem de facto os mínimos daquilo que é um tratamento digno”, refere.
No plano das autoridades, há nota também sobre a violência policial. Pedro Neto recorda que "como autoridade policial, a sua primeira missão é a defesa dos direitos humanos". No entanto, identifica nas forças de segurança elementos "com más motivações", aludindo à necessidade de "investir numa formação mais adequada, mais aprofundada no que toca ao respeito e à defesa dos direitos humanos".
Pedro Neto defende, nesta matéria, também "medidas disciplinares que não deixem margem a dúvidas de que quem cometer abusos de direitos humanos no exercício e na nobreza das suas funções tem de ser sancionado e dispensado até de funções, porque estes agentes que também são um mau exemplo, estão a manchar todos os outros agentes e que podem ser bons agentes e bons profissionais e que querem também fazer um bom trabalho".
[notícia atualizada às 10h46]