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Sem presença física nas escolas “avaria-se o elevador social” que combate desigualdades e aumentam os riscos para crianças e jovens, defenderam esta terça-feira no parlamento Rosário Farmhouse e Dulce Rocha, responsáveis por organismos de proteção de menores.
Durante o período de emergência a Comissão Nacional de Promoção de Direitos e Proteção de Crianças e Jovens (CNPDPCJ) sinalizou cerca de 800 crianças, através de uma ficha criada especificamente para o efeito e entregue aos professores, como estando numa situação de perigo que aconselhava a que tivessem aulas presenciais para garantir a sua proteção e os seus direitos, disse aos deputados a presidente da CNPDPCJ, Rosário Farmhouse, numa audição requerida pelo PSD.
“A escola é fundamental, faz a diferença na vida destas crianças”, disse Rosário Farmhouse, adiantando que a decisão de colocar estas crianças nas escolas durante o período de confinamento, em conjunto com os filhos dos trabalhadores essenciais “para evitar rótulos”, teve a ver com as situações graves de perigo a que estavam sujeitas por estarem fechadas em casa com as suas famílias, registando-se alguns casos de negligência grave.
Defendeu ainda que “é importantíssimo” que no ensino à distância os professores peçam aos alunos para ligar a câmara dos computadores, para melhor poderem acompanhar o ambiente em que decorrem as aulas para as crianças e jovens e sinalizar eventuais problemas.
Questionada pelos deputados sobre as consequências de um menor número ou mesmo inexistência de acompanhamentos presenciais por parte das equipas técnicas durante o período de emergência, Rosário Farmhouse recusou impactos na proteção das crianças.
“Tenho a perceção que nenhuma criança ficou desprotegida. As comissões reinventaram-se”, disse, acrescentando que nem a falta de equipamentos de proteção individual na fase inicial da pandemia e do confinamento levou a que houvesse visitas que ficassem por fazer.
Catarina Marcelino, do PS, defendeu que ter um sistema de proteção de menores “assente na base de parceiros”, em formato de pirâmide, em que a primeira linha de intervenção, correspondente a situações de risco e ainda não de perigo depende de comunicações de escolas, ou familiares ou vizinhos, deve ser repensado.
“Isso tem que nos fazer pensar no futuro, não podemos ter um sistema que coloque crianças em risco”, disse depois da intervenção inicial da presidente da CNPDPCJ, para depois voltar a insistir, já na audição seguinte, da presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), Dulce Rocha e da coordenadora do Projeto Rua deste organismo, Matilde Sirgado, que na educação “o desafio está no próximo ano letivo”.
Sublinhando que os impactos da pandemia nas crianças mais pobres é maior - uma ideia constante e generalizada ao longo das duas audições -, Catarina Marcelino referiu que a telescola foi uma solução positiva – “não digo muito positiva, mas positiva” – afirmando ainda a dificuldade de obter aproveitamento escolar com as dificuldades reportadas neste período.
Diana Ferreira, do PCP, frisou na audição a Dulce Rocha as “enormes desigualdades no processo de aprendizagem”, depois de na audição anterior ter afirmado que “com esta realidade é difícil fazer um discernimento entre abandono escolar tipificado e as dificuldades de aceder à escola neste momento”.
Sandra Cunha, do BE, apontou que as consequências da pandemia “são particularmente devastadoras” para os direitos das crianças, que ficam “todos em perigo”, da saúde à educação, da habitação à segurança, sublinhando que a atuação ao nível da garantia de emprego e habitação das famílias é o que permite assegurar o bem-estar das crianças.
Matilde Sirgado apresentou conclusões de um pequeno inquérito aplicado pelo IAC a um conjunto de crianças acompanhadas pelo instituto em Lisboa, que concretizam as preocupações genéricas com as consequências económicas e sociais: muitas sem meios tecnológicos para acompanhar as aulas ou com meios que não são os ideais, como o telemóvel, ao que acrescia a falta de supervisão de pais ou familiares, maioritariamente com empregos precários, que obrigam a sair cedo e regressar tarde a casa.
“A grande maioria, desistiu, porque ninguém os obrigava. A telescola foi o meio possível, mas não conseguiu chegar a estas crianças. Decidiram não ver e não viam. Não se identificavam com conteúdos como forma de melhorar as suas aprendizagens. […] Temos que adequar algumas medidas e políticas para que esta franja não fique de fora”, disse Matilde Sirgado, que referiu ainda o aumento da fome e das carências básicas junto destas famílias e crianças.
“A escola, a educação tem a função de elevador social. Estamos a notar que a falta da escola vai ter esse efeito muito perverso de agravar desigualdades. […] Verificámos muito que a pobreza se tornava agora mais visível através das nossas crianças que não conseguiam aceder aos instrumentos colocados. Pensava-se que estavam num nível superior, verificou-se que não”, disse Dulce Rocha.
Matilde Sirgado defendeu ainda que é preciso projetos “de evidência (prova) científica”, com o envolvimento de várias áreas, como sejam a educação e a justiça, e não apenas “pequenas experiências ou ‘projetozinhos” precários” para trazer para a educação e formação, até ao nível pessoal e de cidadania, aqueles que “já fizeram um corte com a escola” e têm já “um pezinho na marginalidade” da qual retiram rendimentos.
“Estes jovens têm que aprender, num processo de reeducação alternativo, que existem formas de ganhar dinheiro lícitas”, disse.
Sobre os pedidos de ajuda recebidos pelo IAC durante o período de emergência, Dulce Rocha, disse ser “muito interessante” que estejam em crescendo o número de chamadas feitas pelos próprios menores, ao invés de familiares e vizinhos, relatando preocupações com o que vivem em casa. Ainda sem números concretos para apresentar, disse que “pressente” que possa haver um número de casos de violência doméstica.
Matilde Sirgado disse que as equipas técnicas usaram ainda o número na rede ‘Whatsapp’ para “gerir a ansiedade em grupos”, trabalhando “numa primeira fase relatos de medo dos jovens, inclusivamente de perder os pais”. Agora já notam uma maior desvalorização da pandemia e de procura dos amigos.
Houve ainda um aumento significativo nos pedidos de apoio jurídico, nomeadamente ao nível da regulação das responsabilidades parentais.
Rosário Farmhouse disse que a linha específica para denúncias criada para o período de confinamento recebeu já 121 chamadas, relativas a “algumas situações de perigo, mas muitos pedidos de informação”.
Ainda sobre as questões das desigualdades sociais e impactos da pandemia, Dulce Rocha não quis deixar de referir a situação no bairro da Jamaica, no Seixal, distrito de Setúbal, onde as autoridades de saúde decretaram o encerramento dos cafés devido a um surto, o que foi concretizado com o apoio de um significativo dispositivo policial.
“O bairro da Jamaica não merecia ter sido prendado com os cafés todos fechados. Porque fecharam ali e não noutros? Não percebo, ou então percebo e não quero dizer. Acho incrível”, disse.