A escadaria é longa até à porta que dá entrada para o Centro de Acolhimento "O Poverello", no distrito de Braga. A meio da subida, a escultura em bronze de São Francisco lança os braços ao céu, fita o infinito, como se quisesse desprender-se da vida terrena.
O pobrezinho de Assis está em cada um dos doentes que aqui chegam para receber os últimos cuidados antes de morrer.
"Não ajudamos ninguém a morrer. Acompanhamos a pessoa até à sua morte natural", sublinha o presidente da Fundação Domus Fraternitas.
Para Frei José Lima, "o que importa é acolher o doente e dizer-lhe que vale a pena viver até ao fim. Aqui ninguém desiste dos doentes".
Frei Lima afirma-o com particular propriedade. Além de presidir à fundação que gere "O Poverello", tem a mãe internada na unidade de longa duração, "depois de ter amputado uma perna" há cinco anos.
Um acontecimento "transformador na vida de uma mulher habituada à vida do campo, com as mãos marcadas pela adversidade".
Um dos episódios curiosos aconteceu "no dia em que passava a visita pelos doentes e vi a minha mãe de cabelo arranjado e unhas pintadas".
É um serviço a que qualquer utente desta unidade pode aceder no salão da autoestima, que é o outro nome dado ao espaço que funciona como centro de estética em ponto pequeno.
"A primeira reação é de desconcerto", admite o frade franciscano. "Depois de perguntar à minha mãe o que lhe tinha passado pela cabeça, ela respondeu-me dizendo-me que não era por estar doente que iria perder a alegria de viver. Calou-me na hora", confessa.
Na verdade, a doença terminal "destrói o corpo, mas não podemos deixar que a pessoa seja igualmente destruída.
A pessoa como um todo, o mesmo é dizer a sua dignidade" e a dos que acompanham o doente na terminalidade.
"O doente paliativo faz um exame de vida”
Outras razões não houvesse, o sentido altruísta do próprio doente bastaria para dignificar a última etapa da vida. Enquanto há vida, há sonhos, há desejos para concretizar.
Maria Fernanda tem 61 anos e um cancro no pâncreas em fase terminal.
Os olhos sorriem quando lhe perguntam o que gostava de fazer se não estivesse o dia inteiro ali, acamada. "Gostava de estar na praia", responde sem perder muito tempo a pensar.
Mas o melhor mesmo, "era poder ver toda a família e, principalmente, os netos" que vivem longe.
A voz some. Os olhos ficam, de novo, inexpressivos. O cansaço apodera-se. Maria Fernanda declara-se tranquila, mas a conversa termina ali mesmo, há frases que ficam embargadas pelas emoções. O momento é de introspeção.
Os olhares entrecruzam-se no quarto. José, o marido, diz sentir algum conforto na dificuldade. E, sobretudo, diz-se de consciência tranquila.
Sabe que o luto é inevitável e é uma questão de tempo. "Há dias em que estou muito preparado, há outros em que não e só choro, mas pacifica-me a certeza de que tudo o que pode ser feito por ela está a ser feito".
Quando o momento chegar, os dias não mais serão os mesmos.
"Quase todos os dias me emociono"
Para os familiares fica a saudade que cresce todos os dias, para os profissionais de saúde é um dia que se torna mais longo e mais difícil de digerir.
Com uma agravante: no Poverello, o fim da vida terrena é a realidade de todos os dias.
"Ainda hoje me emocionei", começa por desabafar a coordenadora da equipa de enfermagem.
É o custo que decorre do benefício de trabalhar focado nos doentes da forma mais humanizada possível.
Mariana Marques conta que "há histórias que marcam imenso, seja pela força das pessoas envolvidas, seja pela abertura das famílias, seja pela empatia com os doentes."
Uma outra forma de revisitar a famosa citação de Antoine de Saint-Exupéry, "aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós".
O doente paliativo pressente o seu fim
O grau de dificuldade aumenta quando os próprios doentes têm a noção do que está a acontecer.
"Eles verbalizam-no" e pedem-nos ajuda para encontrar familiares desavindos, para chamar os filhos emigrados. Ou, então, ao contrário, "para esconder a situação dos familiares mais queridos".
Esse é um exercício que José procura fazer por interposta pessoa.
José insiste que está preparado para o momento que vai mudar toda a sua vida. O problema são as filhas. "Uma está em França, a outra trabalha no Ribatejo... Não podem estar sempre aqui. Só em caso extremo."
Um dia, será inevitável. Mais do que nunca, isso pode acontecer a qualquer momento.
Vera Petiz, coordenadora da equipa de Psicologia do "Poverello" diz que "todos os minutos contam" para concretizar os derradeiros projetos de vida.
"Lembro-me de um senhor que casou cá com a mulher de quem se tinha divorciado, mas foi ela que acompanhou todo o processo de internamento".
A história culminou com um final feliz. "Os dois casaram-se e o senhor partiu em paz, dias depois, rodeado da família".
Dentro de cada quarto, cuida-se da vida em contagem decrescente. Mais do que nunca, cada minuto é o último.
Eutanásia "é a vida descartável num ecoponto"
O Poverello começou a funcionar em janeiro de 2012. Atualmente, tem disponibilidade de 58 camas, dez das quais em cuidados paliativos.
Jacó Silva, o frade franciscano responsável pela gestão da unidade, reconhece que, mais cedo ou mais tarde, a legalização da eutanásia regressa ao centro do debate. "É tudo uma questão de prioridades", lamenta.
"Por exemplo, no norte do país, Braga é o único município com mais nascimentos do que óbitos. A população idosa cresce cada vez mais. Infelizmente, a proporção de cuidados continuados, entre eles os paliativos, não cresce de igual modo, principalmente por causa do subfinanciamento. Por isso, antes de se falar de eutanásia, a prioridade deveria ser avançar nos cuidados paliativos."
Enquanto a sociedade não pensar assim, Frei Jacó teme que a condição humana permaneça, à vista da sociedade, como um bem eventualmente descartável.
"É como estar diante do ecoponto. Separamos vidro, plástico, papel e cartão. Nós não temos um ecoponto da vida, embora a sociedade queira impor isso. A nossa escolha é o amor, mesmo diante da dor."