O Dia das Bruxas (Halloween) é uma forte tradição americana. Celebra-se de 31 de Outubro para 1 de Novembro. Mas mais do que um dia ou uma noite, marca uma quadra do ano em que a paisagem fica dominada pelas abóboras recortadas que servem de máscara a miúdos e graúdos.
Este ano a actualidade política trouxe para o Dia das Bruxas uma dose de ironia inesperada. Nesta segunda-feira surgiram as primeiras acusações no caso da investigação à interferência russa na campanha eleitoral do ano passado. E estouraram com uma força que afogou qualquer desejo de celebrar a quadra festiva nos círculos afectos a Donald Trump.
Eis a ironia: o presidente americano tem dito recorrentemente que a investigação à conexão russa na sua campanha não passa de uma “caça às bruxas” baseada num embuste fabricado pelos seus adversários políticos. Pois neste Halloween as bruxas saltaram-lhe ao caminho sob a forma de acusação criminal a três ex-assessores, incluindo um que foi director da campanha durante quatro meses.
Após aturadas e silenciosas averiguações, Robert Mueller, o investigador especial encarregado do processo Trump/Rússia, revelou as acusações a Paul Manafort, Rick Gates e George Papadopoulos, três homens que tiveram responsabilidades e funções diferentes na campanha, mas que se encontram agora a braços com acusações graves cuja moldura penal pode atingir os 15 anos de prisão. Pelo menos para os dois primeiros. Ironicamente — mais uma vez — o menos conhecido e menos relevante na campanha, Papadopoulos, pode ser o mais comprometedor para Trump. Mas já lá vamos.
75 milhões “lavados”
Manafort dirigiu a campanha entre Maio e Agosto de 2016, dando a cara por Trump nesse período, que abrangeu a convenção republicana em que foi consagrado candidato oficial do partido. Sobre ele e sobre o seu sócio Rick Gates — que permaneceu na campanha até ao fim —impendem 12 acusações criminais que vão desde fuga ao fisco a lavagem de dinheiro, passando por falsas declarações e conspiração contra os Estados Unidos.
No cerne delas está a ligação que mantiveram durante anos ao ex-presidente da Ucrânia, Vitor Yanukovitch, um fantoche de Moscovo deposto pelo levantamento popular de 2014, em Kiev. Como lobbyistas de vários interesses ucranianos ligados ao Kremlin, Manafort e Gates ganharam cerca de 75 milhões de dólares, que foram “lavando” em vários offshores. Não declararam tais rendimentos, não pagaram os respectivos impostos, não se registaram como representantes de interesses estrangeiros nos EUA e mentiram às autoridades judiciais quando interrogados sobre estas actividades.
Graças a estas acusações, os dois homens compareceram perante um juiz na segunda-feira, que lhes impôs um regime de detenção domiciliária, lhes confiscou o passaporte e atribuiu uma fiança de 10 milhões de dólares a Manafort e cinco milhões a Gates.
As ilicitudes que lhes são imputadas respeitam a actividades de lobby que remontam a 2006 e se prolongaram quase até à actualidade, o que permitiu à Casa Branca afirmar que nada têm a ver com a sua acção na campanha eleitoral de 2016. Trump reagiu no twitter: “Lamento, mas isto foi há muitos anos, antes de Manafort pertencer à campanha de Trump”. E a sua porta-voz não se cansou de o repetir, sublinhando que tal conduta foi do domínio privado e nada teve a ver com a campanha eleitoral.
Sendo formalmente verdade, é duvidoso, porém, que esta seja a opinião do investigador especial. Quando Manafort foi escolhido para dirigir a campanha, as suas ligações à Rússia já eram sobejamente conhecidas e acabou por abandonar o cargo justamente pelas suspeitas levantadas por essa relação estreita com Moscovo. Isto num contexto em que Trump elogiava Vladimir Putin nos comícios, prometia ter uma boa relação com a Rússia e apelava ao Kremlin para revelar todos os emails de Hillary Clinton, que os serviços secretos russos tinham pirateado.
A conexão russa
No twitter citado, Trump acrescentava que “não há conluio” com a Rússia, mas o outro acusado torna a afirmação muito mais difícil de sustentar. George Papadopoulos teve inúmeros contactos com responsáveis russos e trocou emails com altos quadros da campanha trumpista que provam o seu empenho em que o candidato republicano aproveitasse todo o potencial da ligação a Moscovo que ele cultivava.
Ainda antes de ser do conhecimento público o caso dos emails da campanha de Hillary Clinton, em Abril de 2016, Papadopoulos encontrou-se em Londres com um denominado “professor” ligado ao Kremlin, que lhe garantiu que Moscovo possuía “milhares de emails” comprovativos da “sujidade” da campanha de Clinton. Além disso, o “professor” prometeu apresentá-lo a uma “sobrinha” de Putin e ao embaixador russo em Londres.
Só o encontro com a mulher se concretizou e não era sobrinha de Putin, mas Papadopoulos cultivou a relação com o “professor” e, mais tarde, tentou marcar uma reunião entre responsáveis da campanha e agentes russos. Informou mesmo a campanha que haveria disponibilidade de Putin para se encontrar com Trump para debater o relacionamento entre os dois países caso o multimilionário vencesse as eleições.
Estes factos só por si colocam Papadopoulos como um dos primeiros, senão o primeiro, a tomar conhecimento da existência dos emails pirateados pelos russos ao Partido Democrático. Vários meses antes de começarem a aparecer alguns emails na comunicação social, o que permite interpretar de modo diferente algumas afirmações de Trump na campanha acerca de revelações sobre Hillary Clinton. Assim como um encontro entre o seu filho mais velho, o seu genro e Manafort com uma advogada ligada ao Kremlin que está sob investigação.
Desconhece-se, por ora, a data exacta em que Papadopoulos revelou a responsáveis da campanha a existência dos emails pirateados e nos círculos de Trump a ordem foi de desvalorizar o papel dele na campanha. A porta-voz da Casa Branca repetiu várias vezes que ele tinha sido apenas um voluntário, não remunerado, e sem quaisquer responsabilidades. Um dos advogados da Casa Branca, interrogado por que razão Trump tinha ficado calado quanto a este caso, disse que o presidente não reagira porque não conhecia Papadopoulos. O objectivo era transmitir a ideia de que ele seria apenas um franco atirador voluntarioso que corria por conta própria e cujos actos nunca responsabilizaram a campanha.
“Um tipo excelente”
No entanto, a realidade é bem diferente. Papadopoulos era conselheiro de política externa de Trump. Há pelo menos uma fotografia dele numa reunião em que Trump está presente, bem como Jeff Sessions, um dos principais dirigentes da campanha e hoje ministro da Justiça. O próprio Trump, numa entrevista dada ao “Washington Post”, cita o seu nome ao enumerar os membros da sua equipa de política externa e até o classifica como um “tipo excelente”.
Como se isto não bastasse, os seus emails sobre os contactos com russos foram dirigidos a altos responsáveis da campanha e obtiveram respostas. Sabe-se pelo menos o teor de uma delas, que o encoraja a ir a Moscovo, se isso for viável, para obter mais informações dos russos. Este email foi-lhe enviado por um “supervisor” da campanha, cuja identidade não foi revelada ainda.
Mais, há um outro email que aconselha a que uma eventual ida a Moscovo seja protagonizada por alguém com um “nível mais baixo” na campanha para não dar nas vistas. Papadopoulos parecia ser a pessoa ideal para essa missão, já que era ele que tinha os contactos e não era um personagem conhecido da opinião pública.
Com apenas 30 anos, este ex-conselheiro do candidato Trump pode vir a ser a peça-chave de todo este processo. Porquê? Porque durante as investigações mentiu ao FBI, o que configura um crime federal severamente punido, e mais tarde confessou o crime e aceitou colaborar com a justiça. Desde o Verão que Papadopoulos está a cooperar com a equipa do investigador especial, Robert Mueller, revelando tudo o que sabe sobre as ligações da campanha de Trump a Moscovo, o que lhe dará uma garantia de pena muito atenuada, nos termos da lei americana.
Alguns analistas especulam mesmo que, a partir do momento em que se disponibilizou a colaborar com a justiça, Papadopoulos poderá ter servido aos investigadores para gravar secretamente conversas com outros ex-membros da campanha de Trump que possam ter comprometido muita gente. Se assim for, as revelações que estarão para vir podem ser devastadoras para os círculos trumpistas.
Para já o que se sabe é que o presidente ficou “a ferver” quando tomou conhecimento do caso e a apreensão justifica-se plenamente. De “tipo excelente”, Papadopoulos é agora candidato a “besta negra” deste processo. Ele próprio admitiu que ainda há muito por revelar da sua colaboração com a justiça. E um dos investigadores terá afirmado em tribunal que as acusações divulgadas hoje são apenas uma pequena parte da extensa investigação em curso.
Uma ponta de um icebergue, ao que parece. Mas uma ponta bastante suculenta, a avaliar pelo teor das revelações. Esta é uma procissão que ainda vai no adro.