A inteligência artificial na justiça traz desumanização, alertou esta quinta-feira o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Ramos Soares.
A inteligência artificial foi um dos temas que marcaram o arranque do XII Congresso dos Juízes, no Funchal.
“O afastamento físico do juiz no tribunal, permitido pelo acesso eletrónico ao processo e incentivado pelas vantagens da eficiência, se não for rapidamente contido em limites razoáveis, vai aniquilar a função simbólica clássica da justiça, desumanizar o processo de análise e decisão, aumentar a probabilidade do erro, prejudicar a partilha de informação e deslaçar de vez as já frágeis relações interpessoais”, afirmou Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses.
Também Dulce Neto, presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STAJ), sublinhou na sessão de abertura do Congresso a necessidade de lucidez, “para antecipar o futuro numa era em que se temem novos tipos de ditaduras, como uma ditadura digital capaz de alterar radicalmente os regimes e a governação e atirar o ser humano para a irrelevância na sua quase totalidade, com o poder concentrado nas mãos de uma pequeníssima elite”.
A magistrada afirmou que é preciso “garantir uma adequada articulação entre tecnologia, direitos humanos e direitos fundamentais, certificando que as soluções digitais adotadas são seguras e neutras e geram atos digitais compreensíveis, justos e não discriminatórios”.
"Justiça tem de usar tecnologia para estar mais próxima dos cidadãos"
Ireneu Cabral Barreto, juiz jubilado do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e representante da República na Região Autónoma da Madeira, acredita que novas tecnologias e justiça vão ter de se relacionar.
“O futuro tecnológico e a justiça têm de saber viver sem perder ritos identitários e a justiça tem de usar tecnologia para estar mais próxima dos cidadãos, mas o fator humano jamais pode ser descurado”, defende Ireneu Cabral Barreto.
O magistrado jubilado lamentou que a justiça seja ainda de difícil acesso e que não permita igualdade de circunstâncias.
Ireneu Cabral Barreto aproveitou ainda para sublinhar que “os últimos tempos trouxeram à sociedade portuguesa um clima de instabilidade e desconfiança motivado por casos que têm consequências para o funcionamento da democracia”.
“Os cidadãos não podem viver com a dúvida de saber se os titulares de instituições públicas ou de outra ordem beneficiam e abusam ilegitimamente dessas posições. Em democracia essa dúvida é insuportável e transporta o pernicioso exemplo de que não há limites para quem detém uma posição de poder ou de privilégio”, sublinhou.
“A vida pública judicializou-se”
A justiça foi descrita pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes como diferente fruto de uma sociedade que passou de “indiferente e alheada da justiça” a sociedade “exigente e próxima”.
A justiça “passou a ser esmiuçada ao pormenor, em cada procedimento, em cada palavra, em cada ato, em cada decisão. A transparência do poder judicial tornou-se obrigatória e fiscalização democrática inevitável. A vida pública judicializou-se e colocou os tribunais no centro da controvérsia política. Os casos chegam à justiça mais complexos, mais variados, mais especializados”.
A ASJP aponta ainda como “zonas de grave ineficiência” áreas sensíveis como, por exemplo, a justiça administrativa e fiscal e a justiça penal dos processos complexos de criminalidade económico-financeira, “problemas que fragilizam a justiça e criam tentações de estabelecimento de formas impróprias de controlo da administração da justiça”.
Os juízes pedem mais recursos e melhor organização porque os tribunais, dizem, não são apenas máquinas para produzir decisões.