O 22.º governo constitucional da democracia portuguesa, presidido por António Costa desde 2019, já tem certidão de óbito aprazada, a lavrar depois das próximas eleições legislativas antecipadas. Com a ambição política, a tenacidade habilidosa, o instinto narcísico e o horror à derrota que o caracterizam – às vezes para lá do que seria politicamente recomendável – António Costa será o líder do PS que disputará a refrega.
O PS ainda é poder e, por isso, a tradicional dinâmica de “saco de gatos” ou de “noites das facas longas” que afeta os partidos que não têm poder ainda não se vislumbra no Largo do Rato. No entanto, já há sinais de que António Costa poderá estar a caminho do seu fim político.
“António Costa” – afirmou há dias alguém – “deixou de ser a pessoa que está em melhores condições no PS para liderar um novo fôlego de entendimento à esquerda, e para esse efeito tornou-se um problema, quando até agora tinha sido sempre solução”. O autor desta frase é, pasme-se, um socialista, de seu nome Paulo Pedroso. E Pedroso está a dizer alto o que muitos já pensam – a começar pelo “delfim” Pedro Nuno Santos.
O rumorejar contra o chefe na rota descendente é inevitável em política, e o PS (como o PSD) por ser partido de poder, não perde muito tempo com quem já passou de tempo.
O primeiro-ministro pode esbravejar contra quem quiser e descobrir inimigos em todos os que não lhe votaram o orçamento. A verdade é que o fracasso da semana passada é responsabilidade sua: a direita jamais lhe valeria e a esquerda cansou-se de lhe valer – mas uma e outra foram reações perfeitamente normais de recusa do bonapartismo “dono-disto-tudo” encenado por Costa desde 2015.
Depois de perder a eleição que não devia ter perdido, saltou o muro para montar a geringonça e, de peito feito, declarou, com Catarina e Jerónimo a fazerem coro, que a direita não contava para nada e que nada com ela quereria negociar. Meio país, com importante folha de serviços e credibilidade política, foi metido no gueto. Muito compreensivelmente, Passos Coelho estabeleceu a doutrina: no dia em que o PS precisasse dos votos da direita, de que escarneceu, para se salvar, não teria salvação. Até 2019, Bloco de Esquerda e PCP fizeram a figurinha de falar contra e votar a favor. No ano passado, com o BE a votar contra o orçamento e o PCP a abster-se, os alarmes tocaram. Este ano, na ressaca das autárquicas, o governo vestiu-se de humildade e achou que desfigurando o orçamento, para ele poder aparecer como “o mais à esquerda de todos”, compraria os votos dos parceiros do costume. Mas o muro de 2015, em cima do qual se sentaram, lá continuava, e os fretes ao PS tiveram custos políticos, empurrando o protesto para outras bandas (e por isso o Chega já vai buscar eleitores a feudos do PCP...). Catarina Martins e, sobretudo, Jerónimo preferem o risco das eleições à certeza do definhamento se a farsa continuasse. Percebe-se.
Tudo visto, até pode ser que António Costa ganhe as eleições antecipadas. Mas, a não ser com maioria absoluta improvável, de que lhe servirá essa vitória? Vai estender a mão ao Bloco Central com Rui Rio, ou a pactos de regime reformistas com Paulo Rangel, depois de seis anos de desprezo muito pouco democrático para com a direita? Ou vai namoriscar uma nova geringonça, desta vez para ficar ainda mais nas mãos dos radicais da extrema-esquerda? E com que vontade ou coerência aceitarão estes a geringonça de 2022, se geringonçar não quiseram agora, em 2021? Há seis anos que António Costa está escarranchado ao centro; esse centro, todavia, pode bem ser agora um palco vazio, sem luzes, adereços ou atores.