No início deste ano, quando os presidentes de Câmara eleitos em movimentos independentes decidiram combater a lei que lhe dificultava as candidaturas, Manuel Cordeiro, presidente da Câmara de São João da Pesqueira, foi o porta-voz do movimento.
Em 2017, foram eleitos 17 presidentes de Câmara de movimentos de cidadãos, que são a quarta força política autárquica, com quase quatro mil eleitos entre vereadores, deputados municipais e eleitos de freguesia. Em 2020, PS e PSD tinham alterado a lei eleitoral autárquica, dificultando as candidaturas em movimentos de independentes.
Face a essa alteração, os autarcas independentes chegaram a colocar em cima da mesa a criação de um partido, mas conseguiram o que queriam: a alteração da lei que tinha sido moldada por PS e PSD. Hoje, Manuel Cordeiro diz que não faz sentido um partido de movimentos de independentes, mas considera que poderia fazer sentido um partido dedicado às questões do interior e da descentralização.
Em entrevista à Renascença, o autarca defende um processo lento de regionalização, pede mais competências de decisão para os municípios e manifesta receios sobre a utilização do Programa de Recuperação e Resiliência para combater a desertificação.
Porque é que sempre se candidatou num movimento e nunca através de um partido?
Tem a ver com a perceção que temos da nossa realidade e as pessoas sentiam – e, por isso, também é que decidiram mudar – um ambiente demasiado sufocante. Não estou a acusar partido nenhum, mas tivemos aqui no nosso concelho cerca de 40 anos do mesmo partido, as mesmas pessoas.
Não era motivante e até peço desculpa aos partidos, mas seria redutor para mim candidatar-me por um partido. Claro que tive essa oportunidade e esses convites, mas sentimos que as pessoas queriam mudança e fizeram-na em 2017.
Há muitos independentes assim, mas também há muitos que são como que “dissidentes” dos partidos.
Haverá de tudo. Também é lógico que a maioria tenha tido contacto com os partidos porque só quem se interessa pela política e pelos problemas é que se mete em eleições.
Muitas vezes diz-se que são excluídos dos partidos, mas acho que isso não é um problema. Se não estão nos partidos de que fizeram parte, é sinal que não se reviam nos partidos.
Nos 17 presidentes de Câmara eleitos em movimentos de cidadãos, todos foram abordados por partidos porque são potenciais vencedores, mas todos – à exceção do Vítor Hugo Salgado, de Vizela, que sempre foi do PS e agora vai pelo PS – decidiram continuar a candidatar-se como grupo de cidadãos eleitores.
Como explica o sucesso das candidaturas de movimentos de cidadãos que, em conjunto, têm mais autarcas e votos que vários partidos parlamentares?
Não tenho dúvidas em dizer que acaba por ser uma resposta ao desencantamento das pessoas com os partidos. O que se passa ao nível central também tem algum impacto ao nível local. A possibilidade que existe há muitos anos de serem os próprios locais a escolher os seus candidatos é uma mais-valia fantástica, porque quando os partidos escolhem os seus candidatos e eu como munícipe entender que nenhum vai ao encontro daquilo que pretendo vou acabar por não votar em nenhum ou votar no menos mau.
Portanto, a possibilidade de serem os locais a escolher também um candidato acaba por ser um chamariz. Depois, há alguma heterogeneidade nos grupos de cidadãos, fruto de cada circunstância local. Conseguimos albergar pessoas com diversas opiniões.
E dou um exemplo: tenho comigo três presidentes de Câmara que sempre foram e são do PSD e que desta vez se juntam ao movimento independente. Se eu fosse candidato por um partido, do PS, por exemplo, era mais difícil conseguir aglutinar essa gente.
Num movimento independente cabe toda a gente. E acho que acabamos por ter mais responsabilidades porque, sendo as próprias pessoas a mandatar-nos e não um partido, teremos muitas responsabilidades perante eles no que fizermos.
Nos encontros que tiveram no início do ano chegaram a falar na criação de um partido. Fazia algum sentido a criação de um partido de independentes?
É verdade que, teoricamente, iria descaracterizar aquilo que são os movimentos de independentes. Mas, quando falamos da criação de um partido o que estávamos a dizer era que, com a alteração legislativa de 2020, não tínhamos condições para ser candidatos às câmaras e a assembleias municipais e às freguesias e queríamos ser novamente candidatos.
Então, a única forma que tínhamos de continuar a ser candidatos, se não alterassem a lei, era criar um partido. A questão era só essa, não era intenção de criar um partido porque se fosse tínhamo-lo feito. É mais fácil criar um partido do que responder às exigências, até às atuais regras, quanto mais às anteriores que nos queriam exigir com a alteração de 2020.
Não sei se não faria algum sentido a existência de um partido que respondesse a algumas questões que dizem respeito ao municipalismo, à descentralização de competências, aos problemas do interior. Os partidos que existem não respondem. Mas o que queríamos inicialmente era a alteração da lei e foi aquilo que conseguimos.
Porque é que diz que pode ser necessário um partido que dê resposta às questões da descentralização?
Partido nenhum responde às dificuldades que temos, não por sermos movimento independente ou partido, mas no que diz respeito à questão do interior do país e à questão da descentralização. Nenhum dos partidos que existem responde às nossas preocupações e aos nossos problemas. Nenhum! Os atuais, nomeadamente os do arco do poder, falam muito dessas questões, mas é retórica e depois ninguém tem coragem para fazer o que tem de ser feito.
Vamos ver o que será a tremenda oportunidade que o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) poderá ser para o desenvolvimento do interior, para fazer as reformas que são mesmo necessárias.
Na questão da descentralização de competências, fomos dos primeiros a aceitar nas áreas maiores como a educação e a saúde, sabendo desde o início que as verbas não iam chegar para as necessidades.
Decidimos aceitar porque entendi que, mesmo tendo de recorrer a receitas próprias do município, a aposta na educação e na saúde tinha de ser feita pelo município, mas é uma descentralização de responsabilidades porque recebemos dinheiro para pagar aos funcionários e algum dinheiro para fazer obras e não é uma verdadeira descentralização de competências que nos permita ganhar espaço e nos permita a cada um responder às necessidades da sua população.
Não é uma descentralização de decisões, só de responsabilidades?
É só de responsabilidades e de pagamento de despesas que nem sequer chega para as despesas. Na educação, o Estado transfere-nos 1,48 euros por refeição para aluno; é impossível com esse dinheiro servir refeições e pagar a pessoal. Só se servirmos refeições muito más.
Decidi aceitar as competências porque acho que, se calhar, é o início e é um passo importante para maiores descentralizações. Sou um acérrimo defensor da descentralização de competências – depois, a regionalização será outra coisa – porque na verdade cada concelho, cada território sabe das necessidades que tem.
No nosso concelho, tenho ido a todas as candidaturas possíveis e imaginárias, mas gasta-se muito dinheiro em coisas que não fazem grande falta. Estou a lembrar-me de uma recente que foi a arborização, quase 100 mil euros em arborização. Eu tenho mais necessidades em arranjar o centro de saúde, por exemplo.
Na saúde ou na educação, a nossa competência é receber o dinheiro para pagar aos funcionários no final do mês e receber 10 mil euros para fazer pequenos arranjos no centro de saúde e nas escolas. É isso, mas pode ser um primeiro passo.
O primeiro-ministro já disse que os autarcas eleitos a 26 de setembro vão ser os eleitos com mais competências de sempre. Acha que vai ser mesmo assim?
É preciso que seja assim porque é mesmo necessário. Se calhar, tem-se a ideia de que nas câmaras municipais as pessoas não são competentes ou não têm recursos humanos, nem competências e garanto que isso não é verdade. A delegação de competências já feita, ainda que mínima, significou alguma coisa. Se tivermos mais competências vamos ajudar a resolver a questão da coesão territorial, do desenvolvimento do interior. Não tenho dúvidas nenhumas disso.
Porque diz que é um defensor da descentralização, mas a regionalização é outra coisa? Não defende a regionalização?
Claro que descentralizar não é a mesma coisa que regionalizar, mas confunde-se sempre um bocadinho porque os objetivos acabam por ser comuns de combate ao centralismo. Mas acho que, depois de descentralizar um bocadinho mais, descentralizar mesmo competências, a regionalização depois viria de uma forma quase natural, já num processo em que os municípios primeiro ganhariam mais espaço e competências para depois assumir e compreender a regionalização.
Tem mais sentido do que avançar logo para a regionalização.
Já disse que o PRR pode ser uma grande oportunidade. Está confiante ou receia que seja uma oportunidade perdida?
Falo sempre na lógica de concelhos como o meu. Se nunca um partido apostou no interior, antes pelo contrário, então esta seria uma oportunidade incrível, irrepetível. O investimento que se fizer tem de ser o mais produtivo possível e tem de responder às necessidades reais do país e para mim nessas necessidades reais está também a de ter um país coeso. Isso é indiscutível.
Não discuto a necessidade de serem feitos investimentos fortes em áreas centrais a nível nacional e que possam contribuir para que sejamos um país mais competitivo na Europa e no mundo, mas interessa também que sejamos um país coeso e que se olhe para os dois terços do território que é o interior.
Assusta-me e tenho bastante receio que continuemos a não investir. Se não se investir no interior do país vamos ainda agravar mais a desertificação. É o que nos diz o último censo. As pessoas não ficam num concelho se não tiverem serviços de saúde, se não tiverem emprego.
Há questões que são essenciais ao país e que também dizem muito ao interior, como o investimento em fibra ótica, na investigação, nos cuidados continuados, mas depois há questões estruturais para o interior do país, como as infraestruturas e a falta de serviços. Se tivermos infraestruturas, rede viária e serviços de saúde essa é uma forma de combater a desertificação do interior.
Vários municípios apostaram em medidas de apoio à família e à natalidade, mas não se tem visto resultados. São medidas pouco eficazes?
Não vale a pena. São medidas que ficam bem, mas não vale a pena. Se eu disser que dou um apoio de mil ou dois mil euros para a natalidade por cada filho, não é isso que faz com que as pessoas tenham mais filhos e fiquem nos seus concelhos. Só ficam se tiverem emprego e condições de vida. E as empresas só se instalam aqui se tiverem condições – atualmente não têm – quer de acessibilidades, quer de serviços.
Não tenho no meu concelho um serviço de urgência; estamos a 1h15 da urgência mais próxima. Nenhuma empresa quer vir instalar-se aqui. Vai-nos valendo ser o maior produtor de vinho do Porto da região central. Mas não há mais investimento para além desse porque não existem condições de fixação nem de empresas, nem de serviços que deixem as pessoas descansadas quanto a um problema de saúde. E a justificação é sempre a mesma: é falta de pessoas.
É uma pescadinha de rabo na boca: há falta de pessoas, tiram-se os serviços, tiram-se os serviços há falta de pessoas. Só o emprego e as condições de vida e de segurança é que fazem com que as pessoas se mantenham.
Uma das dúvidas que já se coloca é se teremos mão-de-obra suficiente para cumprir o PRR. Tem falta de mão-de-obra no seu concelho?
Muita falta de mão-de-obra. Nem sequer falo já no PRR. Refiro-me à vinha e à viticultura. É um problema com que nos deparamos ao longo do ano, mas que aumenta no tempo de vindima. As vindimas têm de ser feitas num curto período de tempo e não temos mão-de-obra suficiente.
A mão-de-obra imigrante é uma possibilidade?
Há cerca de dois anos, promovi aqui na Câmara um encontro com o alto comissário para as migrações e fiz questão de chamar todas as empresas para lhes dar conta de programa de apoio para os empresários que acolham imigrantes, mas é uma gota de água.
Temos duas famílias, uma síria, outra afegã, que já se inseriram no mercado de trabalho e também na sociedade, têm miúdos que são excelentes alunos. Tomáramos nós receber aqui muito mais gente, precisamos de ter cá 200 pessoas na próxima semana, mas os processos não são assim tão céleres. Mas o alto comissário sabe que, sempre que tiver famílias para vir para cá, nós garantimos todas as condições para elas ficarem e trabalho imediato.