O Governo encontrou na mensagem do Presidente da República sobre a promulgação do alargamento de apoios sociais uma janela entreaberta que pode limitar os efeitos orçamentais das medidas de alargamento de apoios sociais aprovada no Parlamento.
“O que o sr. Presidente da República, no fundo, diz de essencial naquela mensagem é que não há preto e branco, não há normas que violem a lei travão e normas que não violem a lei travão. Diz- e diz expressamente - que o Governo aplicará a lei na estrita medida do que está previsto no Orçamento”, disse António Costa na segunda-feira, à saída da cerimónia de entrega do prémio IN3+, uma iniciativa da Imprensa Nacional Casa da Moeda.
É essa a janela para o Presidente deixou aberta a aplicação das leis que promulgou contra a vontade do Governo: serem postas em prática apenas na estrita medida em que não implicarem mexidas orçamentais. Por isso, o Governo ainda vai “meditar” na mensagem de Marcelo que acompanha a promulgação e não avança para já com um envio das leis para o Tribunal Constitucional, que não afasta.
“A mensagem não tem só conclusão, tem um conjunto de conclusões. É extensa, tem muitos pontos. O primeiro-ministro tem a obrigação de ler a mensagem toda, da primeira à última palavra, e analisá-la no seu conjunto”, disse António Costa que fez questão de aparecer com o Presidente ao lado logo no dia seguinte à polémica promulgação.
Primeiro-ministro e Presidente da República estiveram presentes na cerimónia promovida pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. E Marcelo, no discurso que fez na cerimónia, salientou que o primeiro-ministro tinha insistido na sua presença devido à importância do prémio que foi entregue.
O Presidente saiu sem fazer declarações à margem, Costa ficou. Conversou longamente com alguns dos convidados, depois com o seu secretário de estado Adjunto, Tiago Antunes, e com a ministra da Modernização Administrativa, Alexandra Leitão, enquanto os jornalistas esperavam ao portão. Por fim, dirigiu-se para a saída e respondeu às perguntas sobre o que o Governo vai fazer.
Questionado sobre se o Governo vai recorrer ao TC, como admitiu, na sexta-feira, a ministra da Presidência Governo admite remeter apoios sociais para o Tribunal Constitucional - Renascença (sapo.pt), Costa não respondeu diretamente. Considerou que a mensagem do Presidente “é algo bastante inovadora do ponto de vista da ciência jurídica e o Governo tem o dever de meditar nesta mensagem antes de decidir o que fazer”.
Questão de contas ou de princípios
A reflexão do Governo “vai demorar o tempo que for necessário”, disse o primeiro-ministro, que optou por ter uma interpretação política da decisão do Presidente. No Governo, contudo, há quem considere que não se deve passar por cima da questão jurídica porque a decisão do Presidente pode abrir um precedente. A Renascença sabe que há membros do Governo que acham que o Governo não deve aceitar tons de cinzento na questão sobre se há violação ou não da norma travão e consideram necessário haver uma clarificação constitucional para que esta situação não se repita.
A chamada ‘norma travão’ existe na Constituição desde 1976 e nunca foi posta em causa, como têm salientando constitucionalistas. É o número 2 do artigo 167º e diz: “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.”
As leis promulgadas pela Presidente Covid-19: O que são os apoios que Marcelo promulgou? - Renascença implicam aumentos de despesa. Segundo o Bloco de Esquerda, as suas medidas implicam 38 milhões de euros, mas o Governo diz que são 40 milhões mensais.
Contudo, a própria incerteza da pandemia e do processo de desconfinamento faz com que essa despesa possa oscilar bastante.
Por exemplo, o aumento de apoios a famílias com crianças até aos 12 anos pode até não se aplicar se as aulas do segundo ciclo recomeçarem de forma presencial no dia 5. Os apoios aos trabalhadores independentes e sócios-gerentes também podem não ter a dimensão que teria se fossem postos em prática em janeiro ou fevereiro, pois só se aplicam a atividades que estejam encerradas e o plano de desconfinamento prevê reaberturas faseadas já nas próximas semanas. Também a majoração nas horas extraordinárias do pessoal de saúde pode ter pouco impacto devido à diminuição da pressão nos internamentos por Covid.
Foi, em parte, com essa incerteza que o Presidente jogou na mensagem que acompanha a promulgação.
“Os três diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar. E, assim sendo, deixando em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado”, escreveu Marcelo, lembrando que “o próprio Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020”.
Ou seja, o Presidente toma a liberdade de considerar que a norma travão pode não ser violada porque não se sabe se a despesa prevista no orçamento vai precisar de ser toda executada. E Presidente conclui: “A interpretação que justifica a promulgação dos presentes três diplomas é simples e é conforme à Constituição: os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente.”
É a essa parte da mensagem que Costa se agarra quando salienta que Marcelo diz expressamente que o Governo aplica as leis do Parlamento, mas na medida em que não violem o que está no Orçamento. Contudo, há constitucionalistas que salientam a dificuldade dessa interpretação lei-travão.
O Governo , usando a expressão do primeiro-ministro, medita, então, a margem de manobra que a mensagem de Marcelo lhe dá e faz contas não apenas ao impacto financeiro que as leis aprovadas pela oposição têm, mas também contas ao impacto político que um recurso para o Constitucional pode trazer. O Governo pode pedir a fiscalização sucessiva dos diplomas, mas não há prazos para o Tribunal decidir, pelo que pode demorar meses e, portanto, não ter efeito sobre a aplicação das leis. E esse pedido irá, politicamente, contra uma mensagem do Presidente que apela ao diálogo e a que Governo e oposição não entrem num clima de “afrontamento sistemático”.