​A pobreza que veio do frio
19-09-2022 - 06:24
 • João César das Neves*

O que podemos fazer? Se a queda é forçosa, o único alívio vem de redistribuir a carga, partilhando a perda entre classes, setores, regiões e gerações. No entanto, por muito que a retórica embeleze o resultado, a verdade é que o país acaba sempre mais pobre.

O mundo mudou em 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia atacou descaradamente o vizinho. Agressões deste tipo não aconteciam em potências de referência desde meados do século passado, e por isso o assalto reabriu feridas que se consideravam definitivamente saradas. Os efeitos sobre o equilíbrio mundial e a trajetória da humanidade são ainda muito incertos, mas, além da terrível destruição de vidas e propriedade, a invasão criou já um choque económico de dimensão planetária. A consequência para Portugal é evidente: estamos mais pobres.

Aquilo a que se tem chamado “inflação”, e que na Europa é por enquanto dominado por uma maciça subida dos preços da energia, empobrece significativamente as economias dependentes dessas importações. Temeu-se muito pior, com fome causada por um enorme choque alimentar, mas ela, de momento, parece afastada. Tal significa que não existe uma solução indolor para o momento. O que quer que façamos, o país terá que viver com menos. Este facto é inelutável, apesar de bastante arredado da vasta discussão à volta da presente situação económica.

O segundo aspecto, talvez mais irritante, é que desta vez não é possível usar o tradicional método lusitano de lidar com crises, fazendo acusações. Desta vez a emergência não resulta dos nossos erros, mas de combates longínquos. Das cinco crises deste quarto de século, as três primeiras, em 2002-03, 2008-09 e 2011-13 foram criadas internamente (com ajuda externa na segunda), mas as duas recentes, em 2020 e a que se anuncia para 2023, devem-se a dois vírus forasteiros, o da gripe e o do imperialismo.

O que podemos então fazer? Se a queda é forçosa, o único alívio vem de redistribuir a carga, partilhando a perda entre classes, setores, regiões e gerações. No entanto, por muito que a retórica embeleze o resultado, a verdade é que o país acaba sempre mais pobre.

A solução mais evidente é também a mais perigosa. O Estado pode, reduzindo os impostos sobre os combustíveis ou subsidiando os seus preços, manter os custos energéticos estáveis apesar do choque.

Se o fizer completa e perfeitamente, isolará a economia da perturbação, podendo esta continuar quase como se nada tivesse acontecido; uma medida parcial, amorteceria o efeito.

Infelizmente, esta intervenção, bastante popular politicamente, equivale apenas a uma cosmética, mascarando os impactos sem resolver as dificuldades. A energia está mesmo mais cara; se os consumidores e as empresas não sentirem essa carestia, continuarão a ter consumos insustentáveis, arruinando o país, que compra agora a mesma energia a preços mais elevados.

Apesar desta medida ser muito inconveniente, silenciando o sinal dos preços, ela pode justificar-se, mesmo que só parcialmente, por defender os utilizadores de energia melhor que as alternativas, devido à complexidade que veremos adiante.

A política mais adequada é deixar que os preços cumpram a sua missão, induzindo a redução dos gastos energéticos, enquanto se centram os esforços no apoio aos rendimentos dos setores mais afetados e mais frágeis. O país, como um todo, não tem alternativa senão apertar o cinto face ao choque negativo; mas as classes sociais desfavorecidas e as empresas mais vulneráveis à energia, podem enfrentar apertos intoleráveis, que as autoridades têm o dever de acautelar. Assim, um programa de subsídios às receitas dos agentes é a forma correta de reagir.

Nestas medidas, no entanto, surgem duas dificuldades importantes. A primeira é de natureza política. Frequentemente, os mais afetados não são os mais vocais ou com maior influência mediático-governamental.

Perante o sofrimento, todos os grupos protestam e solicitam apoio, mas nem sempre os que mais ouvimos são os que realmente merecem e justificam o suporte. Sabemos bem como muitos dos privilegiados têm longa experiência de conseguir passar por vítimas.

A segunda questão é mais técnica: nem sempre é fácil chegar aos grupos mais necessitados ou calcular com rigor o montante de apoio adequado. Por isso, por meras razões pragmáticas, e mesmo suportando algumas deficiências no ajustamento, alguns especialistas recomendam que também se alivie a subida de preços, pela primeira medida, evitando assim que os grupos carentes se vejam em grandes apuros, a que as autoridades não conseguem realmente acudir.

Finalmente, qualquer que seja a estratégia concreta utilizada, existirá inevitavelmente um forte impacto negativo nas contas públicas, seja reduzindo a receita ou aumentando a despesa, atirando a carga para o futuro.

Este efeito mostra-se altamente inconveniente num país já tão endividado como Portugal, até porque vem na sequência do gigantesco défice do choque anterior, ligado à pandemia, que reverteu o esforço de consolidação orçamental anterior.

O problema ganha acuidade acrescida porque o mesmo choque da invasão russa da Ucrânia assinalou o fim do estranho período de taxas de juro anormalmente baixas em que o mundo viveu de 2009 a 2021.

Essa aberração de juros quase nulos ou negativos, constituiu um excelente alívio para os grandes devedores, como Portugal, mas está a chegar ao fim. Até porque as convulsões dos últimos três anos agravaram a posição financeira de todos os países do mundo, subindo assim o preço do crédito.

É verdade que podemos ter um atraso nesse aperto, pois muitas das taxas que pagamos na dívida soberana estão fixas no curto prazo e, entretanto, a subida da inflação favorece os endividados, que pagam as suas responsabilidades em moeda desvalorizada. No entanto, o país tem de se preparar para regressar a tempos antigos em que se sentirá esmagado pelo peso da fatura do esbanjamento antigo. Outra maneira de dizer o mesmo é que, também por razões financeiras, estamos mais pobres.


* João César das Neves é professor da Católica Lisbon School of Business & Economics, doutorado em Economia e autor de vários livros como "As 10 Questões da Pandemia" ou "As 10 Questões do Colapso".

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics