Santos Silva. "A Índia é a farmácia do mundo e vai ajudar a Europa na pandemia"
07-04-2021 - 07:34
 • José Pedro Frazão

A um mês da cimeira entre a União Europeia e a Índia, o ministro português dos Negócios Estrangeiros enquadra a reunião do Porto como um passo importante para a reindustrialização da própria Europa. Em entrevista à Renascença, Augusto Santos Silva admite um aumento da exportação de vacinas para África e partilha o desejo de fechar os acordos comerciais com o Mercosul, Pacífico, Caraíbas e África subsariana. Assegura ainda que a componente ambiental está alinhada na frente de cooperação económica com a África e será salvaguardada no acordo comercial com a América Latina.

Portugal herdou processos negociais complexos na frente comercial. O acordo com o Mercosul tem sido contestado por diversas organizações ambientais e há países europeus que estão a colocar entraves ao fecho definitivo do acordo. Em entrevista à Renascença, o ministro dos Negócios Estrangeiros assegura que a Presidência Portuguesa quer muito fechar esse acordo, enquanto trabalha para renovar o tratado comercial com os países ACP – África, Caraíbas e Pacífico. Da sua lavra, Portugal avança com a cartada da Índia porque as especiarias de hoje são os medicamentos que travam pandemias.


Daqui a um mês, no Porto, teremos a cimeira União Europeia-Índia. Foi anunciado que as áreas que vão concentrar mais atenção, entre outras, são o digital, a conectividade, a saúde e a ação climática. Em que é que a Índia pode ajudar a Europa por exemplo na área da saúde?

Em muito. A Europa está comprometida com o seu próprio processo de reindustrialização. Nas últimas décadas, externalizámos para fora do continente uma parte considerável da nossa produção industrial e na pandemia aprendemos à nossa custa que isso é um erro. Precisamos de controlar mais, de estarmos mais próximos das cadeias de valor necessárias para assegurar bens que consideramos básicos.

Se se diz com propriedade que a China é a "fábrica do mundo", também se diz com igual propriedade que a Índia é a "farmácia do mundo", tão forte é a Índia na produção de princípios ativos para medicamentos. Uma maior cooperação entre a União Europeia e a Índia no domínio das indústrias da saúde é muito positiva para a Europa.

Vai ainda ajudar na pandemia?

Vai ajudar na pandemia e na nossa capacidade de resposta a novas epidemias e novos episódios críticos de saúde pública. Não tenhamos dúvidas de que devemos estar preparados para isso.

Vamos ter uma cimeira União Europeia-África durante a Presidência Portuguesa em modo presencial? Isso ainda é uma possibilidade?

Não. A situação pandémica não permite uma cimeira União Europeia – União Africana no seu formato mais alargado. Essa cimeira realizar-se-á quando houver condições para isso. Neste momento, estamos a trabalhar na preparação da reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Ainda não sabemos se ela irá ser por videoconferência ou presencial.

A intenção é fazê-la agora em maio ou junho?

Vamos ver. A política externa é dirigida não pela Presidência rotativa do Conselho que Portugal agora assume, mas sim pelo Alto Representante para a Política Externa e de Segurança. No âmbito da Presidência, temos dois objetivos essenciais para o reforço da nossa cooperação com África.

O primeiro é a conclusão do processo de negociação do novo acordo de cooperação com África subsariana e os países do Pacífico e das Caraíbas. É o chamado "pós-Cotonou", uma vez que o acordo em vigor foi assinado em 2000 na cidade de Cotonou, dura 20 anos e, portanto, é necessário agora um novo acordo. Já se chegou a acordo político no final do ano passado e trata-se agora de concluir e permitir a assinatura do acordo.

O segundo objetivo da Presidência é pôr o tema do crescimento económico neste período de transição na agenda das relações entre a Europa e África. Para isso, vamos realizar em meados de abril, aqui em Lisboa, um fórum entre a União Europeia e África sobre "crescimento verde". Esse Fórum está a ser preparado pelas chamadas "Green Talks", conversas "verdes" em várias capitais africanas e europeias desde 24 de março. Começou em Dakar e nos próximos dias vão realizar-se outras três para preparar o fórum que se realizará em Lisboa.

O reforço da dimensão económica na relação Europa-África tem como pano de fundo a possibilidade de um maior investimento europeu em África?

Claro. Até porque nós temos hoje um novo instrumento financeiro para o fazer com uma dimensão como nunca houve. Chama-se Instrumento de Vizinhança Desenvolvimento e Cooperação Internacional (IVDCI) e tem 80 mil milhões de euros de fundos até 2027.

Trata-se de um poderoso instrumento financeiro para, entre outras coisas, apoiar as parcerias económicas euro-africanas. Essas são as nossas prioridades, a que acresce naturalmente o apoio específico a Moçambique por causa da situação vivida em Cabo Delgado.

É possível ir mais longe na ajuda europeia ao continente africano em matéria de vacinação contra a Covid-19?

Sim, sem dúvida nenhuma. Aliás, esperamos mobilizar ou subir o nível desse apoio agora com a nova vacina da Janssen/Johnson&Johnson. É uma vacina unidose e que não tem as exigências de preservação, armazenamento e administração tão difíceis como as das outras vacinas.

Vai aumentar a carga de transferência de vacinas para o continente africano?

Vai aumentar a capacidade de distribuição e aplicação de vacinas pelo continente africano. É preciso recordar que a União Europeia é o maior exportador mundial de vacinas.

As críticas que às vezes se fazem são inteiramente legítimas, mas não devem esquecer esse facto. A União Europeia é não só o primeiro doador para o mecanismo internacional de distribuição de vacinas (COVAX) como é o primeiro exportador mundial de vacinas.

A nível nacional, Portugal já decidiu que pelo menos 5% das vacinas a que temos direito na distribuição europeia serão doados a países africanos de língua portuguesa e a Timor-Leste.

Há fortes reservas a um acordo comercial com o Mercosul. Por exemplo, a França tem sido bastante vocal em relação a essa matéria.

E há fortes apoios.

Podemos presumir que este desentendimento em negociação pode ser desfeito até ao final da Presidência Portuguesa da União Europeia?

Vamos ver. A Presidência Portuguesa tudo fará para que avance o processo de conclusão do acordo com o Mercosul. É um acordo economicamente muito equilibrado, que beneficia ambas as partes. Do ponto de vista geopolítico, é essencial reforçar a relação entre a Europa e a América Latina.

E há depois um elemento de credibilidade porque a União Europeia não pode passar 20 anos a negociar um acordo, chegar a acordo e depois ela própria pôr em questão o acordo que fez. E por todas essas razões, a Presidência Portuguesa faz muita força para que avancemos na conclusão do acordo com o Mercosul.

Colocaram-se questões legítimas relacionadas com o Acordo de Paris, o combate à desflorestação e os compromissos ambientais. Por isso mesmo, com o apoio da Presidência, a Comissão Europeia está a trabalhar num documento adicional ao acordo para garantir que essas preocupações são correspondidas.