“Era como se houvesse atentados na Figueira da Foz todos os dias e em Coimbra estivesse tudo normal”. A distância é a mesma, apenas 50 quilómetros, só que o país não é Portugal. Ricardo fala do Iraque, da guerra e do Estado Islâmico com o mesmo à vontade com que fala das praias da Figueira.
É arqueólogo, esteve lá, a meia centena de quilómetros do cenário de guerra, a fazer escavações, no vale de Bazian. “A paisagem é bonita”, recorda, e a vida corre normalmente no Curdistão iraquiano, ignorando os ataques do autoproclamado Estado Islâmico, ali ao lado, em Mossul. “No início fazia-me confusão”, confessa.
Ricardo Cabral é o principal parceiro de André Tomé nas campanhas de investigação arqueológica no Próximo Oriente. São arqueólogos do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto (CEAUCP).
Durante três anos trabalharam na Síria, em campanhas de dois meses, mas desde 2012 que a guerra os obrigou a mudar o “posto de trabalho” para o Curdistão iraquiano, onde dão continuidade a um projecto de investigação do CEAUCP, centrado no Norte da Mesopotâmia.
Mas chegou 2011, a guerra, o Estado Islâmico. E a missão dos dois arqueólogos portugueses foi interrompida. André chama-lhe o “ano sabático”.
Voltar à Síria estava fora de questão, mas mantinham a vontade de continuar a trabalhar no Próximo Oriente. Em 2012 visitaram o Curdistão iraquiano pela primeira vez. No ano seguinte, partiram para a primeira missão, mas o Estado Islâmico também chegou ao Iraque.
Da vida no terreno, guardam também as histórias daqueles que conheceram na Síria e que por lá ficaram. Mantêm contacto com um ex-trabalhador sírio, que conseguiu fugir para a Alemanha há um ano, com alguns familiares. Conta-lhes que "a situação não era de todo fácil, nem mesmo para sobreviver. É um desespero muito grande, um medo muito grande, sobretudo."
Imagens que "só valem um like” no Facebook
André não esconde a tristeza e a revolta ao ver as imagens do antes e depois da destruição provocada pelo Estado Islâmico. “O poder político podia ter evitado esta situação”, comenta.
Lamenta especialmente a destruição de Palmira, cidade que a UNESCO classificou como património mundial em 1980 e um dos berços da civilização.
Em Palmira, foi construída uma estrada que atravessa a necrópole, destruindo vários túmulos durante a sua construção. Imagens: UNOSAT
Os terroristas fizeram explodir o interior do Templo de Bel. Era um dos cartões de visita da cidade de Palmira. Imagens: UNOSAT
Destruição de um santuário em Raqqa, cidade síria que é considerada "capital" do Estado Islâmico. Imagens: UNOSAT
Em Alepo, vários locais históricos foram destruídos (visível na parte esquerda superior da imagem), entre os quais o hotel Carlton. Imagens: UNOSAT
"É uma perda muito grande.” Palmira é uma cidade especial. Situada a cerca de 210 quilómetros da capital síria, Damasco, a "pérola do deserto", como é apelidada esta cidade com mais de 2 mil anos, sempre foi bastante cosmopolita. Funcionou como entreposto comercial desde a época clássica. Por aqui passavam mercadores do Líbano e da Palestina rumo ao Iraque e chegavam inúmeras matérias-primas do Afeganistão e da Índia.
Desde Maio que Palmira é controlada pelo autoproclamado Estado Islâmico e assume uma grande importância estratégica para o grupo radical. Em Agosto, decapitaram um dos maiores especialistas dos tesouros arquelógicos da cidade, Khaled al-Assad, de 82 anos. Em menos de um ano de ocupação, o rasto de destruição é bem evidente. As explosões no Templo de Bel e no Arco do Triunfo, duas das principais atracções da cidade, são disso exemplo.
André acredita que pouco vai sobrar na “pérola do deserto”. “É uma perda provavelmente ainda maior do que a destruição dos budas no Afeganistão, que na altura também chocou meio mundo e depois pouco se fez”.
Conhecer o passado para não repetir os erros
O argumento do Estado Islâmico (EI) é a idolatria: destruir tudo o que representa os “ídolos que os infiéis adoraram”. A justificação aparece em vários vídeos que mostram a destruição de património. São imagens filmadas pelos próprios terroristas, que têm provocado indignação no Ocidente.
Mas os “poderosos” vídeos do EI têm um duplo propósito: a revolta manifestada pelo Ocidente é utilizada pelos terroristas para convencerem a população local. Argumentam que a comunidade internacional está mais preocupada com a preservação do património do que com as inúmeras vítimas mortais do conflito sírio.
André argumenta que é a história a repetir-se. "Tudo isto que está a acontecer é facilmente colocado noutros momentos da história”, diz. “Na própria Mesopotâmia quando alguém conquistava uma cidade, destruía os vestígios do regime anterior."
“Nós encontrámos uma evidência de uma destruição desse tipo, em que a cidade é conquistada e a fachada principal do templo principal acabou por ser completamente arrasada pelas tropas que invadiram o sítio. E isto é uma prática exactamente igual à do Estado Islâmico, hoje em dia”, descreve André, relembrando que o próprio EI já destruiu várias mesquistas. Por isso, acrescenta: “Conhecer o passado devia servir pelo menos para aprendermos com os nossos erros".
Um “buraco negro” na história da humanidade
Só num ano 700 sítios foram pilhados na Síria. É o que mostram as imagens de satélite. André não tem dúvidas que "houve escavações ilegais”, para roubar estátuas e outros artefactos. Ainda assim, o arqueólogo não condena quem o faz para sobreviver. Sabe que, para muitos, vender o passado é a única forma de garantir o futuro.
Há artefactos que valem milhares de euros e os locais sabem disso. “Muitas dessas pessoas trabalharam em escavações com especialistas, sabem o que estão a fazer. E depois há os agentes do contrabando, que conhecem melhor do que ninguém o que as pessoas querem comprar.”
“Podemos estar a criar um buraco na história da humanidade”, avisa André. E explica porquê: “Um objecto roubado até pode aparecer na Europa, mas depois não vamos saber muito bem de onde é que veio, como é que era usado, como e por quem foi construído. Não vamos saber como é que viviam estes povos. Isso é uma perda irreparável, é uma memória que se perde”.
Digitalizar para preservar
A solução pode passar, por isso, pelo registo digital do património. É isso que André e Ricardo tentam fazer nas missões, agora no Curdistão iraquiano, e que pretendem continuar nos próximos anos. Na primeira campanha contaram com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, agora o financiamento provém do Museu da Universidade de Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Quando estão no Próximo Oriente, acordam bem cedo - por volta das 4h30 - para chegarem ao local da escavação ainda antes das 6h00, quando o calor não é muito. É que, à tarde, a temperatura chega facilmente aos 40ºC. E isto é em plena Primavera.
Em Kani Shaie, os dias são passados a escavar, a fotografar e a digitalizar da forma mais detalhada possível cada um dos artefactos encontrados. Depois, em Portugal, juntam todas as fotografias para fazer uma reconstrução em três dimensões.
Os dois arqueólogos acreditam que a digitalização é uma forma de divulgação e preservação de sítios arquelógicos e, por isso, são da opinião de que esse será o caminho para que não se apague da memória os monumentos destruídos pelo Estado Islâmico. A UNESCO também já admitiu esta “solução”.
André e Ricardo estão em Coimbra, já a preparar a próxima missão, em 2016. Com muitos contratempos, não abandonam a luta por preservar a memória que outros tentam destruir.