A 19 de Outubro de 1973, numa sexta-feira à noite, o então presidente Richard Nixon destituiu o procurador especial que investigava o caso Watergate, Archibald Cox, mandou agentes do FBI selar as instalações onde ele trabalhava e impediu a retirada de quaisquer documentos do edifício.
Pouco antes, Nixon tinha instruído o procurador-geral (equivalente a ministro da Justiça) a demitir Cox, mas este recusou. Tentou depois que o procurador-geral adjunto executasse a sua ordem, mas este também recusou. Ambos resignaram aos cargos perante a pressão de Nixon e na mesma noite o Ministério da Justiça ficou decapitado.
Esta foi a tentativa mais ruidosa de Richard Nixon impedir que as investigações ao caso Watergate prosseguissem, mas elas prosseguiram e, dez meses depois, em Agosto de 1974, o presidente resignou ao cargo para evitar um “impeachment”.
O triste episódio da prepotência de Nixon foi profusamente evocado esta quarta-feira nos media e na opinião pública americana a propósito da destituição do director do FBI, James Comey, pelo presidente Trump na terça-feira à noite. A ordem presidencial também surgiu só à noite, teve efeitos imediatos, apanhou o visado e o público americano de surpresa e deixou no ar a suspeita de que o seu verdadeiro objectivo é também impedir o prosseguimento de uma investigação — no caso a investigação às cumplicidades entre a campanha eleitoral de Trump e a Rússia durante o ano passado.
As afinidades entre os dois casos são, por isso, várias, mas há uma curiosa diferença. Nixon não tinha qualquer problema com o FBI, porque não era o FBI que investigava o Watergate. O seu problema era com um investigador especial, Archibald Cox, que se dedicava exclusivamente ao caso.
Trump tinha um problema com o FBI porque era esta agência policial que conduzia a investigação ao eventual conluio com a Rússia. Mas agora que demitiu o seu director, pode acabar com um procurador especial dedicado exclusivamente ao caso.
Esse é o desejo exprimido desde já por alguns congressistas e senadores de ambos os partidos, que olham para a demissão de Comey como uma interferência da Casa Branca num assunto da justiça e uma ameaça à separação de poderes.
Por isso, os apelos para que seja nomeado um procurador especial para prosseguir com a investigação ao caso Trump-Rússia têm-se multiplicado, exprimindo a convicção de que não estão garantidas as condições de independência do inquérito no seio do FBI.
Cabeça a prémio
James Comey estava com a cabeça a prémio desde que o FBI deu como provado que Moscovo interferiu na campanha eleitoral para favorecer Donald Trump e prejudicar Hillary Clinton. Mas sobretudo desde que revelou que estava em curso uma outra investigação para apurar se tinha havido qualquer conluio, qualquer colaboração, qualquer cumplicidade, entre responsáveis da campanha e Moscovo.
Um inquérito que pode vir a revelar-se altamente incómodo para a administração, porque colaborar com uma potência estrangeira configura um crime federal. E não faltam indícios de “cumplicidades” com Moscovo, já que com Trump trabalharam homens como Paul Manafort, que foi director de campanha durante quatro meses, Michael Flynn, que foi conselheiro de segurança nacional durante 24 dias, Roger Stone e Stephen Miller, conselheiros do candidato, com ligações muito estreitas ao Kremlin, incluindo negócios e pagamentos por serviços prestados.
O próprio procurador-geral (ministro da Justiça) recém-empossado por Trump, Jeff Sessions, afastou-se desta investigação por ter ocultado ao Congresso que se tinha encontrado com o embaixador russo durante o período de transição. Ou seja, a pessoa que ocupa o topo do edifício judicial americano também não está isenta de suspeitas em matéria de independência em relação ao Kremlin.
O director do FBI estava claramente empenhado em desvendar tudo aquilo que pudesse ser comprometedor nesta matéria. Ainda na semana passada solicitou ao Ministério da Justiça reforço de fundos para a investigação ao caso Trump-Rússia, o que terá funcionado na administração como um sinal de alarme em relação à sua determinação de ir até ao fundo no inquérito.
Mas a tudo isto, Trump tem chamado uma “conspiração” e uma “charada paga pelos contribuintes”, perguntando quando é que ela acaba, como ainda fez no twitter na segunda-feira.
As reacções no interior do FBI à demissão de Comey foram de perplexidade, segundo a imprensa americana. Os agentes que falaram sob anonimato garantem que não há memória de um director ter sido demitido enquanto decorria um inquérito relevante e exprimem receio quanto à continuidade da investigação à Rússia. Além disso, censuram a deselegância e brusquidão do acto. Comey estava em Los Angeles em serviço quando soube pela televisão do seu “despedimento”. Ninguém da administração teve a frontalidade de lhe telefonar antecipadamente a dar conta da decisão. O que é ainda mais censurável tendo em conta que Trump chamou à Casa Branca os líderes do Congresso para lhes comunicar a decisão antes de a anunciar publicamente.
O argumento dos emails de Hillary
Naturalmente, que a justificação dada pela administração para demitir Comey não é a investigação à relação com a Rússia, mas sim a forma como ele conduziu o inquérito aos emails de Hillary Clinton.
E o pretexto foi o que se passou em mais uma audição no Congresso, na semana passada. Comey disse a certa altura que havia milhares de emails transferidos pela principal assessora de Hillary, Huma Abedin, para o computador do seu então marido, Anthony Weiner, alguns dos quais continham informação confidencial. Na terça-feira, o FBI corrigiu tal afirmação, dizendo que não eram milhares de emails, mas somente algumas dezenas.
Invocar uma inexactidão do director do FBI como um dos argumentos para o despedir é, em teoria, aceitável, mas quando esse argumento provém de uma administração que tem feito da propagação de mentiras, falsidades e distorções de factos o seu dia-a-dia, a credibilidade do argumento fica muito fragilizada.
Formalmente a demissão foi da responsabilidade do presidente, mas na carta enviada a Comey, Trump diz que aceitou a sugestão do procurador-geral para o afastar. A argumentação da procuradoria é uma apreciação crítica de toda a condução do processo dos emails de Hillary Clinton, discordando nomeadamente do facto de Comey se ter sentido na obrigação de comunicar ao Congresso a 11 dias das eleições novos desenvolvimentos do caso, em vez de ter prosseguido a investigação no silêncio dos gabinetes.
Curiosamente, na altura em que tal sucedeu, Jeff Sessions, então senador, concordou publicamente com a atitude de Comey, defendendo-a. Agora assinou um documento que contradiz essa opinião.
Desconfiança e afrontamento
Em qualquer caso, é evidente que a relação entre Trump e Comey nunca foi fácil. Quando o director do FBI anunciou, em Julho, que não acusaria Hillary Clinton de práticas criminais, propondo o arquivamento do inquérito à questão dos emails, o candidato Trump não poupou nos ataques, dando James Comey como o exemplo do sistema “viciado” que dominava Washington. Nessa altura, o director do FBI atraiu as críticas dos republicanos em geral por ter poupado Hillary a um processo judicial — disse apenas que tinha sido “extremamente descuidada” — e os louvores dos democratas.
Mas mais tarde, em Outubro, quando faltavam apenas 11 dias para as eleições, Comey informou o Congresso que tinham sido descobertos novos emails que poderiam ser relevantes para o processo, os papéis inverteram-se.
Foram os republicanos a louvar o director e os democratas a criticá-lo. Trump confessou mesmo que se calhar o sistema não estava tão viciado como ele pensava. “Ele teve muita coragem. Recuperou a reputação”, elogiou.
Esta revelação de novos elementos eventualmente relevantes para o processo quase à boca da urnas deixou o desfecho eleitoral em suspenso e o fantasma de uma acusação criminal voltou a pairar sobre Hillary Clinton. A candidata desceu nas sondagens e ainda recentemente responsabilizou Comey pela sua derrota.
Já mais recentemente, o FBI desmentiu formalmente Trump quando veio a público garantir que ninguém tinha feito escutas na Trump Tower durante a campanha eleitoral, muito menos o presidente Obama, como Trump havia acusado gratuitamente. Comey foi muito assertivo quando as conclusões dessa averiguação ficaram prontas: ninguém fez escutas na Trump Tower, o presidente Obama não mandou fazer escutas, não pediu ao FBI para fazer escutas, nem podia pedir tal coisa porque não tem poderes para isso.
Para alguém que entende e respeita o princípio da separação de poderes de um estado de direito a declaração de Comey só pode ser entendida como institucionalmente irrepreensível, mas para alguém como Donald Trump, que valoriza sobretudo a lealdade, ela foi entendida como uma declaração de guerra e um afrontamento a um presidente que se julga todo-poderoso. A rota de colisão era evidente.
À luz das várias decisões tomadas com implicações na campanha eleitoral e das audições que teve no Congresso, onde se mostrou muito seguro e alheio a cumplicidades político-partidárias, James Comey provou a sua independência de funcionário superior encarregado de uma polícia criminal com grandes poderes. Uma independência que poderia agora conduzir o FBI a formular acusações criminais a colaboradores de Trump, algo que o presidente quer evitar a todo o custo.
Uma independência que, além do mais, colide com a concepção autoritária que Trump tem da presidência, donde gostaria de impor a sua vontade discricionária sem quaisquer freios e contrapesos a incomodá-lo. Por isso, há quem veja nesta demissão de Comey uma “crise constitucional” e o acto mais grave até agora do novo ocupante da Casa Branca.
Terá o sistema americano força para manter os freios e contrapesos e evitar uma deriva para o autoritarismo? Eis a interrogação do momento entre alguns políticos, juristas e analistas.