Politicamente, o chumbo do orçamento encerrou a legislatura. O Presidente da República avisara: se o orçamento chumbasse, dissolveria o parlamento. Aliás, ainda não tinha sido chumbado o texto orçamental e já o Presidente pusera os Conselheiros de Estado em alerta, para iniciar o processo de consultas que conduz à dissolução da Assembleia da República.
E nos discursos de encerramento do debate orçamental, rufaram os tambores das eleições, com os partidos da Geringonça a estrearem os respetivos discursos que vamos escutar na próxima campanha eleitoral. Acusaram-se reciprocamente com o necessário tom de violência, como uma peça bem decorada e orquestrada. Cada partido da Geringonça esteve à altura do seu papel. Na verdade, todos eles queriam eleições, se possível a correr, coisa que até agradaria a Rui Rio e a Francisco Rodrigues dos Santos, para tirar gás aos adversários internos.
Enterrada (politicamente) a legislatura, eis que a Geringonça acordou para um último round: à beira de novas eleições, querem ainda aprovar, a 4 de novembro, o diploma sobre a eutanásia.
Na campanha eleitoral de 2019, nenhum destes partidos explicou aos eleitores que desejava aprovar a eutanásia. Mas uma vez contados os votos dedicaram-se ao tema como se o tivessem feito. Pelo meio, aprovaram um diploma que o Tribunal Constitucional chumbou. E agora que se avizinham as eleições – ótima oportunidade para discutir a eutanásia e outros temas que tenham na gaveta, em vez de os subtrair ao escrutínio dos eleitores – pretendem aprovar no último dia, o que não conseguiram fazer nos últimos dois anos. Com isto evitam que mais uma vez os eleitores se pronunciem sobre um tema, mil vezes mais importante do que um qualquer orçamento de Estado.
Faz-me a maior das confusões que aqueles que dizem querer ouvir o povo, só o queiram escutar sobre aquilo que lhes interessa; ou lhes falte coragem para correrem o risco de ouvirem o que não querem.
Como se os temas da vida e da eutanásia só pudessem ser decididos pelas almas iluminadas de São Bento, ignorando o povo, isto é: tratando o povo como ignorante. Não podem esperar uns dias e colocar claramente a eutanásia nos respetivos programas eleitorais, pedindo, que a par de outros temas, o povo se pronuncie? Não é essa a essência da democracia?
Se os partidos da Geringonça estavam desesperados por eleições, não podem agora aprovar à pressa diplomas sobre temas essenciais. É, tão só, uma questão de seriedade e credibilidade.
O oportunismo desacredita a política e os processos eleitorais. Numa altura em que a abstenção é um problema dramático para as democracias, tratar os eleitores desta maneira é a melhor maneira de o agravar.
Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, terá insistido no agendamento da votação da eutanásia para 4 de novembro, afirmando que o Presidente da República não veria problema em que a votação se fizesse.
Não acredito que Marcelo Rebelo de Sousa possa acolher esta manobra de última hora, a menos que vete politicamente (mais) este embuste, triste e lamentável, da Geringonça.
Todos os atores políticos sabem que isto não se faz. Legalmente poderão fazê-lo. Eticamente não. A menos que a ética republicana que alguns tantas vezes invocam, possa validar um acto de manifesta desonestidade política.