Uma farmacêutica a trabalhar no Douro termina o turno, abre o email e decide enviar um alerta. Não tem álcool disponível e, como farmacêutica enraizada numa das mais importantes regiões vitivinícolas do mundo, não compreende a dependencia do álcool importado de França num país com tanta capacidade para destilar, nem por que razão as farmácias não podem ainda produzir o seu próprio álcool. "Porque hoje é um vírus, depois serão dois". E propõe a matéria para investigação jornalística.
Do outro lado, numa caixa de correio virtual e sem rosto ou nome de pessoa, há um jornalista que recebe a informação e decide procurar respostas. Cristina não imagina o que acontece depois de premir o botão "enviar", mas espera que a sua denúncia seja lida, ouvida, levada a sério. Cristina só pode esperar que as suas preocupações sejam tidas em consideração por quem decide o que é ou não é notícia, o que é ou não é relevante para todos e para cada um. Mas ela, que é farmacêutica, sabe que é. E acabou de cumprir um dever cívico.
Nunca as caixas de correio dos órgãos de comunicação social receberam tantas denúncias, dúvidas e pedidos. Nunca os seus leitores, ouvintes, espectadores, seguidores se mostraram tão interessados em respostas e em tornar-se parte colaborante e activa. A maior parte de nós assiste ao fluir noticioso dos dias de forma passiva, conduzidos à velocidade anestesiante do deslizar do dedo pelo "feed" da rede social ou da escuta alheada do ruído televisivo, sempre com os olhos pregados no segundo ecrã - no tal "feed" ou no "chat" de grupo.
Mas não agora, não neste momento. Precisamos saber, denunciar, refletir, encontrar sentidos e descortinar a verdade. Até Cristina, que provavelmente nunca antes fez uma denúncia. Há um despertar coletivo da mente que nos tornou a todos mais preocupados, mais interessados, mais curiosos. Mas sobretudo mais necessitados de boa informação.
Dia após dia é tornado público um documento em formato PDF que é usado como meio para divulgar oficialmente os números da pandemia em Portugal. É servido aos jornalistas como prato feito do dia, pronto a engolir sem mastigar - e preferencialmente questionar. Dia após dia traz incongruências, números que não se acertam, desmentidos e correções, até mortes que não se verificaram. Já mudou de apresentação mais do que uma vez, já incluiu informação que entretanto desapareceu, já justificou de todas as formas a ausência de valores que deixam a mais básica das operações matemáticas sem resultado certo.
A acompanhar o boletim, uma conferência de imprensa - para esclarecer. Mas em que nada disto se esclarece. Com duração limitada a 20 minutos e espaço para uma mão cheia de perguntas de órgãos de comunicação social sorteados para inscrições à vez e de forma rotativa. Mas é preciso questionar muito mais. Os pedidos de esclarecimento são remetidos insistentemente todo o dia, por todas as vias, e boa parte das vezes ficam sem resposta. Eles hão-de desistir, alguém pensará. É a velhinha estratégia de "spining" que tantas vezes produz os efeitos desejados, mais ainda em redações assoberbadas, geografica e organizacionalmente pulverizadas (efeitos do teletrabalho) e com jornalistas pressionados pelo tempo e pressionados para dar resposta ao turbilhão informativo.
(Enquanto isto, no nicho de uma rede social qualquer, algum agente interessado da sociedade civil se ocupará de dizer umas verdades sobre a incapacidade crónica dos jornalistas em fazer jornalismo e perceber o que é notícia.)
Também a comunidade científica clama por mais transparência e acesso aos dados, porque podem ajudar a prever a evolução do surto e ajudar a tomar as decisões que a todos importam e sobre todos impactam. Os números e as histórias que contam importam - e muito. Porque não são apenas números, somos todos nós - as nossas famílias, pais, avós e filhos, amigos e conhecidos, camaradas.
Tudo é novo, tudo é absolutamente novo a todos os níveis. Talvez menos as velhas estratégias. É humanamente impossível dar conta de tudo o que está a acontecer, porque, de repente, tudo é notícia. E o vórtex engole tudo e todos - os jornalistas que não se cuidem e na queda arrastam um edifício em escombros de erros, inconsistências e meias verdades capazes de enganar, distrair e disseminar o pior dos vírus - o da desinformacao colectiva.
Chamam-lhe guerra, mas à guerra um jornalista escolhe ir. E aqui, hoje, não há escolha.
Porque o relato indireto não é trabalho jornalístico. Quem relata está condicionado, vive o que relata, nunca pode estar a fazer jornalismo na vez do jornalista. "Jornalista não fica em casa", ouvimos orgulhosamente dizer quem nos lidera, quando é junto dos outros que nos é exigido que estejamos. É missão.
Porque replicar números e mapas não é trabalho jornalístico. Encontrar notícia nos números, analisá-los, explorá-los e pô-los em perspectiva é trabalho jornalístico. Mas para isso é preciso dados desagregados, verdadeiramente transparentes, por uma vez.
(Afinal, em quantos registos de contratos no Base.gov se especificam questões contratuais do que é celebrado entre o Estado e os seus fornecedores? Em quantas séries de dados do portal da transparência do SNS se consegue encontrar a informação que realmente interessa? Afinal, quantos ventiladores há em Portugal? - andámos a perguntar insistentemente, até que alguém os contabilizou, um a um - um processo que ia demorar horas, ao 12º dia de surto, e nos deixou em suspenso por dias.)
Não precisamos de transparência de fazer de conta. O país precisa da verdade.
Cristina precisa de um problema resolvido - por si, pelos seus filhos, pela sua comunidade; e centenas, milhares, milhões de ouvintes, leitores, espectadores, seguidores precisam de esclarecer as suas dúvidas, saber como reagir, o que prever e evitar no meio de uma pandemia e com o país em estado de emergência.
É em alturas como esta que o jornalismo se afirma mais do que nunca. Os jornalistas não se servem a si próprios, estão aqui para servir. Sempre. Sem intermediários, sem medo, sem moralismos, com verdade.
*jornalista, chefe de redacção.
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