Ser CEO na era da IA
23-12-2024 - 06:00
 • Sílvia Almeida

A chave não é tornar os líderes peritos em tecnologia - é torná-los peritos em liderar num mundo tecnologicamente avançado. O gabinete de canto pode ter-se tornado virtual, mas a essência da liderança continua a ser fundamentalmente humana.

Imagine três CEOs nos seus habitats naturais: Em 1979, João senta-se atrás de uma enorme secretária de mogno, com a sua secretária - sim, era esta a distribuição do género - a selecionar chamadas e a gerir o seu calendário em papel. Em 1999, a Patrícia desloca-se entre as reuniões com o seu BlackBerry, respondendo a mensagens de correio eletrónico entre as apresentações do Conselho de Administração. Hoje, a Sara gere a sua empresa a partir de qualquer lugar, utilizando a inteligência artificial (IA) para analisar as tendências do mercado enquanto o seu assistente virtual organiza a próxima sessão de trabalho da equipa, que está distribuída pelo mundo. O gabinete de canto não mudou apenas de localização - sofreu uma transformação fundamental na forma como a liderança funciona.

Uma das vantagens da idade (felizmente há algumas) é poder fazer retrospetivas históricas sem recurso a pesquisa documental. Vamos então explorar como a tecnologia reformulou o papel do CEO em três períodos revolucionários e, no processo, descobrir o que isso nos revela sobre as competências necessárias para ser líder de empresas nesta era da ‘IA democratizada’.

A liderança da era do computador: “Será que isto nos vai poupar dinheiro?”

O testemunho do Manuel, que liderou uma fábrica no início da década de 1980: “O meu diretor financeiro veio ter comigo em 1982 com uma proposta para gastar 50 mil contos numa coisa chamada 'computadores pessoais'”, recorda (para os mais jovens: o ‘conto’ era a designação coloquial para mil escudos, e esta quantia era o equivalente de aproximadamente 250 mil euros). "Pensei que ele tinha perdido o juízo. Tínhamos um sistema que funcionava - porquê arranjar o que não está estragado?"

Esta transição não foi apenas tecnológica - tratou-se de transformar a forma como os diretores executivos tomavam decisões e geriam a informação. Nesta fase, a tomada de decisões passa do instinto e dos relatórios mensais aos dados em tempo real, a comunicação evolui do ditado de memorandos à utilização direta do computador e o acesso à informação passa de um acesso filtrado por assistentes ao acesso direto.

As competências do novo CEO incluem a compreensão de relatórios gerados por computador, a gestão de investimentos em tecnologia, e o equilíbrio entre métodos de trabalho novos e tradicionais, o que implica saber liderar equipas em transição. Para o Manuel, “a parte mais difícil não foi aprender a utilizar o computador, foi aprender a confiar nos dados que ele fornecia, em detrimento dos meus 30 anos de instinto empresarial.”

A liderança da era da Internet: “O e-mail está a destruir a produtividade!”

A Laura tornou-se CEO de uma cadeia de retalho em 1995. “De repente, toda a gente queria que a nossa empresa tivesse um 'website'”, recorda. “Mas o mais chocante foi que todos passaram a poder contactar-me diretamente por e-mail, a qualquer hora. As fronteiras entre o trabalho e a vida desapareceram de um dia para o outro.”

De repente, a expetativa de disponibilidade da liderança – de todos, na realidade – passa do tradicional ‘das 9 às 5’ para um ‘24/7’, a monitorização dos mercados e resultados evolui dos relatórios trimestrais ao feedback em tempo real e a concorrência multiplica-se do local ao global.

A liderança passa a preocupar-se com novos temas: compreensão do mercado global, gestão da comunicação digital, gestão permanente da marca e reputação. Em consequência, é obrigada a uma tomada de decisões mais complexa e muito mais rápida.

“Em 2000, eu estava a gerir uma empresa diferente daquela com que tinha começado”, diz Laura. “Os nossos concorrentes já não estavam apenas do outro lado da cidade - estavam do outro lado do mundo.”

A liderança da era da IA: “O meu copiloto é um algoritmo”

Apresentamos o Marco, diretor executivo de uma empresa de software moderna. O seu dia é radicalmente diferente do dos seus antecessores e oferece uma janela para a forma como a IA está a remodelar o papel da liderança executiva.

Vamos seguir um dia na vida dele:

Marco começa o seu dia não com um briefing tradicional, mas com a leitura de um relatório noturno, gerado por IA, que abrange movimentos do mercado e iniciativas da concorrência, o sentimento nas redes sociais sobre a sua empresa, principais métricas de desempenho em todos os departamentos, tendências emergentes e potenciais ameaças. "O meu assistente de IA processa mais informação antes do pequeno-almoço do que eu costumava ver num mês", explica. “O desafio não é obter informação - é saber o que fazer com ela.”

Durante a reunião da Comissão Executiva, o Marco e a equipa utilizam IA para simular diferentes cenários estratégicos em tempo real, gerar abordagens alternativas aos desafios, analisar os potenciais resultados de cada decisão e acompanhar o envolvimento da equipa.

No briefing de comunicação, em vez de uma apresentação de comunicação corporativa tradicional, a IA é usada para personalizar mensagens para diferentes grupos-alvo, monitorizar a reação global em tempo real, e ajustar as mensagens em função da análise de sentimentos realizada por IA. Esta sessão é virtual, já que a equipa está baseada noutra geografia.

O início da tarde centra-se na estratégia de produto, em que a IA ajuda a identificar oportunidades emergentes no mercado, prever as necessidades dos clientes, avaliar ameaças competitivas e gerar abordagens de soluções inovadoras. A reunião resulta num roadmap detalhado de implementação de uma inovação relevante.

O dia termina com a preparação da reunião anual de planeamento estratégico que vai fazer com os acionistas. Utilizando IA, define rapidamente diferentes cenários de crescimento e a respetiva implicação para os resultados da empresa, otimiza a alocação de recursos por cenário e elabora um plano estratégico provisório.

Podemos dizer, com segurança, que muito mudou para os CEOs modernos: de conselheiros humanos passam a gerir a insights otimizados; a informação transforma-se: os resumos filtrados de antes são agora análises digitais exaustivas; os ciclos anuais de planeamento estratégico perdem importância, em favor da adaptação contínua; e, finalmente, a liderança de equipas baseada na intuição ou relatórios periódicos evolui para uma liderança suportada em dados dinâmicos.

As novas competências essenciais dos CEOs atuais têm de incluir a capacidade de integração da estratégia de IA, uma literacia de dados aprofundada, a liderança de equipas híbridas e, por fim, a preocupação com a governação ética destes recursos de IA.

Mas então, estamos a evoluir para a desumanização da liderança? A minha opinião é “não”, acredito que a humanidade vai sempre prevalecer. Mas, tal como nos anos 80 e 90, estamos a testemunhar uma alteração profunda da distribuição de funções entre humano e máquina e, tal como antes, a liderança deverá ser capaz de guiar as equipas nesta transição, redistribuir os recursos de acordo com as novas prioridades, revendo os sistemas de gestão, e já agora de incentivos, de forma a capacitar pessoas e organizações para reimaginar a competitividade no contexto desta transformação profunda.

Olhando para trás, para a forma como a função de CEO evoluiu através destas revoluções tecnológicas que eu pude testemunhar, uma coisa torna-se clara: a natureza fundamental da liderança - inspirar as pessoas, tomar decisões difíceis, impulsionar a inovação - permanece constante. O que muda é a forma como executamos estas responsabilidades. A chave não é tornar os líderes peritos em tecnologia - é torná-los peritos em liderar num mundo tecnologicamente avançado. O gabinete de canto pode ter-se tornado virtual, mas a essência da liderança continua a ser fundamentalmente humana.

CEOs bem-sucedidos de amanhã serão aqueles que sabem orquestrar a harmonia entre o talento humano e as capacidades de IA, manter a ligação humana tirando partido das ferramentas digitais, impulsionar a inovação através de uma visão empresarial e de mercado melhorada pela IA e construir organizações éticas e sustentáveis num mundo interligado.

Enfim, vai dar trabalho, mas vai ser divertido!


Sílvia Almeida, professora da Católica-Lisbon School of Business and Economics

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica-Lisbon School of Business and Economics