Crédito barato e dinheiro dado
30-03-2020 - 06:15

A ideia de um plano Marshall, hoje, é uma utopia. E o dinheiro dado ou emprestado barato pelos Estados a pessoas e empresas acaba em dívida pública. É com ela que se terá de viver durante décadas.

O coronavírus já matou mais gente nos Estados Unidos do que na China. Durante semanas Trump desvalorizou a pandemia. Depois teve de mudar, até porque os infetados começaram a surgir em Estados decisivos para a sua eventual reeleição, em Novembro deste ano. Mesmo assim, Trump quer agora limitar as quarentenas e outras limitações ao contágio do vírus, contra a posição de muitos governadores estaduais.

Numa medida essencial Trump não hesitou: lançar o programa maior de sempre de apoio à economia, que certamente entrará em recessão severa. Este programa inclui uma medida de que não se fala na Europa: apoios financeiros diretos a pessoas e empresas, a fundo perdido. Assim, nos EUA cada adulto que tenha um rendimento anual até 75 mil dólares receberá 1 200 dólares, sem condições; e as crianças receberão 500 dólares. Não é muito para um desempregado, mas é melhor do que nada.

Este sistema tem a vantagem de ser de execução rápida. E é importante num país onde os apoios sociais são escassos. Nos EUA não vigora um Estado social, como, melhor ou pior, existe nos países da Europa comunitiam divisas para importar bens sens sesenciasra mundial, vencedores e vencidos ária e no Canadá. Dezenas de milhões de americanos não têm acesso a qualquer seguro de saúde. Esse número subirá quando a pandemia aumentar o desemprego, pois numerosos seguros estão ligados ao contrato de trabalho – um desempregado fica, nos EUA, duplamente desprotegido.

Mas o dinheiro diretamente dado a pessoas e empresas na América não dispensa um recurso ao crédito, por parte do Estado federal, para financiar a concessão deste dinheiro a fundo perdido. Não é problema para o governo americano vender dívida pública a juro muito baixo; a própria Reserva Federal (Fed, o banco central dos EUA) comprará boa parte dessa dívida. Para isso, o Congresso debate um reforço de capital na Fed, com dinheiro dos contribuintes americanos – é uma pescadinha de rabo na boca...

Na Europa a Alemanha lançou, também, um grande programa para travar a recessão, sem apoios diretos a fundo perdido. Esse programa implica a emissão de dívida pública pelo Estado federal alemão, com taxas de juros baixíssimas, se não mesmo negativas (no caso de dívida a curto prazo). Não haverá dificuldades nessa área, até porque o BCE diz não ter limites para comprar dívida soberana nesta fase de crise aguda.

Assim, mesmo os apoios diretos, a fundo perdido, dos Estados a famílias e empresas implicam, numa segunda fase, emissão de dívida pública, ou seja, recurso ao crédito. Esse é o enorme problema de Itália, que terá de financiar o seu programa de combate à recessão económica, aumentando uma já muito elevada dívida pública (130% do PIB, número que irá subir). O limite do défice orçamental de 3% do PIB está suspenso. Mas há o evidente risco de os mercados não comprarem dívida pública italiana a juros aceitáveis, mesmo com a ajuda do BCE.

Por isso a mutualização da dívida é necessária, até para Portugal, por causa da nossa dívida pública de 120% do PIB. O facto de termos em 2019 as contas públicas com um excedente (uma novidade em democracia) é um importante factor que joga em nosso benefício. Mas poderá não ser suficiente.

Como se vê, estes apoios à economia nada têm a ver com o Plano Marshall, que alguns reclamam. Finda a II guerra mundial, vencedores e vencidos na Europa estavam destroçados e não possuíam divisas para importar bens essenciais. Pelo contrário, os EUA tinham, com o esforço de guerra, ultrapassado a depressão económica que vinha de 1929.

Prolongando alguns auxílios pontuais, em 1947 os EUA lançaram um enorme programa plurianual (durou até 1951) de ajuda financeira à Europa, maior parte da qual a fundo perdido. Entre 1948 e 1952 a Europa ocidental (a União Soviética e os países satélites recusaram a ajuda) cresceu como nunca antes. O que contribuiu, também, para moderar a influência dos partidos comunistas, em França e Itália sobretudo. E foi a rampa de lançamento da integração europeia.

De onde viria o dinheiro para um plano Marshall, agora? Dos EUA é impensável, por motivos económicos e políticos. Os bancos centrais, como a Fed e o BCE, com as suas políticas não convencionais de compra de dívida, de certa maneira criam dinheiro. Mas temos de ser realistas: as próximas décadas serão marcadas pela dívida, pública e privada.

Este conteúdo é feito no âmbito da parceria Renascença/Euranet Plus – Rede Europeia de Rádios. Veja todos os conteúdos Renascença/Euranet Plus.