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Mais partilha de conhecimento e um ataque inicial mais eficaz nas primeiras horas do fogo poderiam ter evitado as consequências mais graves do fogo de Pedrógão Grande, a 17 de Junho, em que morreram 64 pessoas. É o que aponta o relatório da comissão técnica independente, entregue esta quinta-feira no Parlamento e que considera que foram as “opções tácticas e estratégicas” da Protecção Civil que levaram às “consequências catastróficas” do incêndio.
“A incapacidade em reconhecer e/ou responder atempada e adequadamente às condições meteorológicas que seriam enfrentadas ao longo do dia 17 está na génese da tragédia de Pedrógão Grande”, lê-se no relatório entregue pelo presidente da comissão, João Guerreiro, ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e que esta tarde será também entregue ao primeiro-ministro. António Costa já anunciou para dia 21 um Conselho de Ministros extraordinário para discutir o documento.
O relatório tem várias recomendações, tanto no âmbito da organização do sistema de Protecção Civil como na política florestal e na ligação entre as universidades, os meios de prevenção e combate ao fogo e as Forças Armadas.
No sumário executivo, o documento começa, aliás, por apontar um divórcio entre o conhecimento acumulado e os meios no terreno, tanto no que diz respeito à gestão da floresta como no desempenho dos operacionais da Protecção Civil.
“Esta é a primeira problemática que urge superar”, lê-se no relatório disponível no site do Parlamento e que, no capítulo da qualificação de bombeiros e profissionais da Protecção Civil, diz que é importante distinguir o que pode ser feito por vocação e boa vontade e o que exige um perfil profissional.
No que respeita ao incêndio de Pedrógão em concreto, essa maior partilha e aproveitamento de conhecimento e um desempenho mais profissional dos meios envolvidos poderia ter evitado que assumisse a dimensão que teve.
O relatório aponta as condições que se conjugaram naquele dia: o adiantado estado de secura da vegetação, a grande instabilidade da atmosfera, o facto de ainda ser Primavera e não estar accionada a "fase Charlie" de combate a incêndios e os sucessivos alertas meteorológicos.
Face a essas condições, os técnicos consideram que era de prever que naquela região ocorressem fogos simultâneos por efeito da trovoada seca e que a “muito elevada instabilidade atmosférica exarcebaria os efeitos e tornar o comportamento do fogo mais errático”. E distinguem cinco fases do fogo, que podem ser reduzidas sobretudo a duas:
- uma primeira, até às 18h00, em que seria possível combater o fogo e conter os seus flancos se tivesse havido um ataque ampliado e bem organizado;
- uma segunda, entre as 18 horas e as 21 horas, em que o fogo se torna “incontrolável, independentemente dos meios disponíveis”.
Falhou, portanto, a capacidade de percepção do que aquele fogo poderia vir a ser. “O incêndio de Pedrógão Grande é um caso especial de superação do potencial previsível de propagação ao passar por duas alterações de comportamento, a primeira das quais possível (alteração de direcção e evolução mais rápida) e previsível, havendo acompanhamento meteorológico; e a segunda muito improvável (colapso da coluna de convecção e "downburst"), tal como demonstrado pelas simulações de comportamento do fogo.
O facto de tal ter sucedido antes do início do Verão e à hora do dia em que normalmente diminui a severidade das condições meteorológicas, presumivelmente afectou a percepção de risco por parte dos operacionais”, lê-se no relatório, que reconhece que a segunda modificação do comportamento do fogo não poderia ter sido prevista por nenhum serviço de emergências em Portugal ou na Europa.
Pedrógão como aviso
Os técnicos acabam mesmo por considerar que o que se passou em Pedrógão é um aviso do que pode vir aí e das alterações que são urgentes para impedir que se repita.
“O incêndio de Pedrógão Grande é, portanto, um exemplo e um aviso de como os sistemas actuais de combate a incêndios não estão preparados para enfrentar um novo problema com raiz nas alterações climáticas. Este incêndio tornou esse problema evidente, pelo que urge entender o fenómeno e adaptar as estruturas de Protecção Civil para adquirir capacidade de antecipação e planeamento face ao mesmo, substituindo a lógica de 'mais meios' pela lógica do conhecimento e da proactividade”, escrevem.
No que diz respeito à prevenção, apontam como “maior constrangimento” a falta de cumprimento das regras sobre vegetação (50 metros em volta das edificações, 10 metros para cada lado da rede viária e 100 metros à volta dos aglomerados populacionais). Ou seja, havia vegetação onde não devia haver.
Ainda no capítulo da prevenção, mas ao nível do sistema de defesa contra incêndios, apontam o facto de os postos de vigia ainda não estarem activos, nem haver vigilância móvel. Perante os avisos e alertas meteorológicos, consideram que devia ter havido uma antecipação dos meios.
“É manifesta a rigidez dos procedimentos e recursos disponíveis para a pré-supressão e supressão a incêndios em Portugal, indicando deficiências na percepção do risco e impedindo uma resposta efectiva à evolução temporal do potencial de incêndios ao longo do ano. Note-se que Portugal não dispõe de operacionais especializados em meteorologia aplicada a incêndios, com acompanhamento permanente (em tempo real) das condições e dos incêndios activos”, escreve a comissão técnica.
E conclui: “a incapacidade em reconhecer e/ou responder atempada e adequadamente às condições meteorológicas que seriam enfrentadas ao longo do dia 17 está na génese da tragédia de Pedrógão Grande”.
Opções tácticas e estratégicas erradas
Falhou a prevenção, mas também a resposta inicial. Os técnicos consideram mesmo que “houve subavaliação e excesso de zelo na análise da fase inicial do incêndio, que contribuíram para que o ataque inicial não conseguisse debater o avanço do fogo”.
O alerta de incêndio em Escalos Fundeiros, recebido em Leiria às 14h43, não foi devidamente valorizado e o conhecimento das condições do terreno, mas também da dispersão de populações nas freguesias prioritárias “deveria ter colocado de sobreaviso a Autoridade de Protecção Civil” e suscitado o envio de mais meios, nomeadamente mais um meio aéreo, e uma estratégia diferente de combate. E deveria ter levado à evacuação dessas aldeias prioritárias até às 16 horas.
Numa fase crítica do incêndio, entre as 16h00 e as 18h00, não houve intervenção de meios aéreos. Nessa hora deveria ter sido alterado o comportamento do combate. A partir das 18h00, o fogo expande-se com grande intensidade, os bombeiros deixam de conseguir circular e o pânico instala-se.
“A intensidade e rapidez do fogo, aliada à ausência de autoridades e de bombeiros, criou um ambiente de grande intimidação, sobretudo para as famílias que integravam crianças e jovens. Muitas dessas famílias saíram das respectivas casas em plena 'tempestade do fogo' resultante do 'downburst' associado ao colapso da coluna de convecção. Na situação de fuga provavelmente pouco haveria a fazer”, reconhece o relatório, recordando que “a maioria das fatalidades ocorreu no período entre as 20h00 e as 21h00, durante o qual arderam mais de 4.500 hectares”. “Nesse período, e durante 10 minutos, o incêndio desenvolveu-se à velocidade estimada de 15 km/hora, situação crítica apenas passível de medidas defensivas”, acrescentam os técnicos.
Foi nessa hora que ocorreu a maioria das mortes. No Parlamento, o presidente da comissão técnica disse que não é possível concluir que qualquer morte se tenha devido a indicações dadas pela GNR para os carros seguirem pela Estrada Nacional 236-1.
Perturbação no posto de comando
O conhecimento de que há vítimas mortais marca a evolução seguinte dos acontecimentos. E nessa fase, os técnicos apontam a “presença excessiva de autoridades e elementos de órgãos de comunicação social” no pólo de comando que mudou três vezes de localização. Primeiro, esteve em Escalos Fundeiros; depois, em Pedrógão, onde se confrontou com “dificuldades irremediáveis no acesso à rede de comunicações; e, mais tarde, em Avelar.
As dificuldades de comunicações, muito apontadas nos dias seguintes à tragédia, não são, contudo, valorizadas pela comissão técnica, que considera que “as deficiências no comando e gestão da operação de socorro” foram agravadas por essas dificuldades de comunicação”. Mas considera que o que foi determinante para as “consequências catastróficas do incêndio foram as opções tácticas e estratégicas”.
A culpa não foi do SIRESP
Ainda assim, como se vai lendo nas páginas do relatório, a culpa não foi do SIRESP. “No que respeita ao incêndio de Pedrógão Grande, e para além das excepcionalidades meteorológicas, não houve pré-posicionamento de forças, nem análise da evolução da situação com base na informação meteorológica disponível. A partir do momento em que foi comunicado o alerta do incêndio, não houve a percepção da gravidade potencial do fogo, não se mobilizaram totalmente os meios que estavam disponíveis e os fenómenos meteorológicos extremos acabaram por conduzir o fogo, até às 3h00 do dia 18 de Junho, a uma situação perfeitamente incontrolável”, concluem os técnicos.