Clique em cima para ouvir o programa Som de Bola 5 (Euro 2016) - "Bámos lá cambada" (José Estebes e Carlos Paião).
"Bámos Lá Cambada" voltou para inspirar a seleção nacional, desta vez para o Mundial do Qatar. A música de José Estebes, famoso alter-ego futebolístico de Herman José, regressa 38 anos depois sob uma nova versão.
O hino original remonta a 1986, ano em que foi composto para apoiar a "Seleção das Quinas" durante o Mundial do México.
O novo cântico, reeditado por Herman José, foi anunciado pelo humorista nas redes sociais e o videoclipe também já foi publicado pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) no YouTube.
Deste modo, a dupla Herman José / Carlos Paião sucede a David Carreira. No ano passado, para apoiar a seleção no Euro 2020, o cantor lançou a música "Vamos com Tudo", que contou com artistas lusófonos, como Ludmilla, Giulia Be e Preto Show.
Mas sabe como foi criado José Estebes? E o hino futebolístico "Bámos lá Cambada"? Herman José contou tudo à Renascença, em 2016. Em discurso direto e com os bês todos.
1. A inspiração
Ela foi nascendo aos segmentos. O primeiro grande responsável foi o meu agente artístico no Porto, que era um homem adorável que já morreu chamado Cipriano Costa, com quem eu comecei a trabalhar e a ganhar dinheiro nos espectáculos do Norte com o Nicolau [Breyner], em 1975/76. Lembro-me que esses espectáculos eram muito pujantes e muito bem pagos.
E estava tantas vezes com ele que comecei a imitá-lo completamente. Às tantas, já estava a falar como ele falava. Era o senhor Cipriano e a família e a esposa. E o enbelopezinho com o dinheiro, e as coisinhas e o almocinho e o jantarinho e mais a festazinha e as horas. E um cão, a esposa tinha um cão muito pequenino que era uma pincha. Que tinha os olhos esbugalhados, devia ter hipertiroidismo. E portanto comecei a imitar o Cipriano Costa muitas vezes em privado e as pessoas achavam-me piada.
2. A materialização
A certa altura, o António Tavares Teles, que é muito amigo do Tozé Brito, colaborava comigo nos textos e também na editora, disse “Eh pá, porque é que não aproveitas esse sotaque maravilhoso para fazer um homem que seja do FC Porto e que comente futebol? Nós nunca conhecemos as caricaturas do ponto de vista do homem do Porto, é sempre tudo os de Lisboa a gozarem com as pessoas do Porto." E então eu começo um bocado, com a voz ainda mais estrangulada, a fazer o José Estebes, na rádio [Comercial], em 1980, num programa que se chamava “A Flor do Éter”.
3. A televisão
Quando finalmente me aprovaram um programa de televisão, que era “O Tal Canal”, eu pensei: já que tenho a voz e tenho as ideias e os textos e a prática e o sucesso – porque quem ouvia o programa adorava aquelas piadas – pegando naquela ideia do homem do Norte [imita sotaque] e os casacos do Pedroto e os adeptos que gostam das suas tripas e dos seus copos, que quando acabam os almoços às quatro da tarde, ficam todos com o nariz vermelho, e a cantar e a beber, – acaba por ser fácil arranjar um casaco, a gravata, as patilhas e fazer o resto. Ele é um trabalho de anos, ele não nasceu de repente.
4. A recepção
Quando a personagem começa no Porto ela é recebida de duas maneiras: pessoas que adoraram e que aderiram imediatamente; e aquelas pessoas mais conservadoras, mais desconfiadas que acharam “Isto é um gozo, não sei se devemos gostar disto”. Só que logo na terceira ou quarta edição, quem é que o Estebes recebe? O próprio José Maria Pedroto, que me adorava, e foi lá brincar comigo. A partir do momento em que o Pedroto, que é a alma do FC Porto, contracena com o José Estebes a coisa ficou completamente unânime e a personagem passou a ser do Porto. Literalmente. Faz parte do museu dos dragões neste momento.
E como se não bastasse, em 85, um ano antes da marcha do Estebes, quem é que aceita o convite? O director desportivo acabado de ser conduzido à presidência, Jorge Nuno Pinto da Costa. Um homem com 50 anos, esperto que nem um alho, e que vai lá contracenar com o José Estebes já com uma linguagem muito pouco portuguesa. O Pinto da Costa é um cidadão do mundo, um homem extraordinariamente culto.
5. A diversão
A altura em que mais me diverti a fazer o Estebes foi num programa que se chamava “Humor de Perdição”, em que o Estebes se apaixonava pela Rosa Lobato de Faria e então tinha umas cenas divertidíssimas que eram escritas por mim. E aí era um disparate total, estávamos tardes inteiras para gravar, tais eram os ataques de riso. Confesso-lhe que quando tenho de fazer o Estebes falando de futebol, a concentração tem de ser tanta para eu não me esquecer dos nomes, das jogadas, dos sítios, que verdadeiramente prazer não tenho tempo para ter. Tenho depois quando vejo, quando estou a fazer é só um trabalho de concentração.
A "pomada"? O que eu bebia era groselha. Ao segundo copo de vinho, em gravações, nem se lembra do texto nem de nada. Álcool é a coisa mais desmobilizadora para um actor. No caso do Pedroto imagino que somos capazes de ter mandado comprar uma garrafa de excelente vinho para o homenagear.
Herman José não é adepto de futebol e não sabe do jogo – "deve ser quase uma doença". E também não esconde que tem “um carinho desmedido” e “uma enorme dívida de gratidão” pelo Porto – clube e cidade.
6. "Bámos lá cambada"
De 1985 para 86 foi uma fase muito gira, muito profícua, porque eu tinha acabado de fazer um programa que se chamava “Hermanias” e tinha também uma relação muito profícua com a editora, a Valentim de Carvalho. E o David Ferreira lembrou-se de juntar uma quantidade de artistas da Valentim na altura: a Alexandra, o Marco Paulo, o Luís Represas, uma quantidade de gente, e desafiar o Carlos Paião, com quem já tínhamos feito muitas coisas muito orelhudas, “A Canção do Beijinho", a canção do Serafim, por aí fora, a fazer uma marcha em função do futebol.
Fomos todos para estúdio, aquele grupo enorme de gente acabou por fazer o coro, e eu peguei na minha personagem Estebes e usando aquela ideia do “olá cambada”, que era uma coisa uma ideia minha, o Paião, muito inteligentemente, escreveu uma quadra: “Vamos lá cambada/ Todos à molhada/ que isto é futebol total”. Gravámos aquilo muito rapidamente, o Ramón Galarza fez num instante um arranjo muito simplório, também sem grandes sofisticações, e lançámos aquilo, convencidos de que ia ser um pequenino apontamento que iria ficar no rodapé da história de Saltillo e nada mais.
7. A construção e o resultado
Digamos que a parte popular e espontânea é minha. O Carlos Paião teve, depois, a capacidade de pegar nas várias expressões que na altura estavam terrivelmente populares por causa do êxito da própria personagem e condensá-las numa cantiga.
Mas na verdade o talento dele para a escrita humorística musical é de tal maneira forte que ele consegue com essa marcha fazer o mesmo que nós sentimos com coisas como a “Caldeirada”, do Alberto Janes, ou “A Casa da Mariquinhas”, ou aquelas marchas maravilhosas do maestro Ferrão, que ficaram na história da música portuguesa. São coisas simples, mas tão artísticas que pura e simplesmente não desaparecem.
Ele tinha uma relação tangencial com o futebol. Interessava-se minimamente por aqueles jogos mais empolgantes e acredito que pontualmente torcesse e se emocionasse. Agora, o que ele tinha era uma cultura geral de tal maneira vasta que mesmo que lhe pedissem uma cantiga sobre críquete ele, sem nunca ver um jogo, iria fazê-la com certeza. Ele tinha essa capacidade.
8. O génio de Carlos Paião
Na altura não se percebia curiosamente, porque o sonho dele era ser respeitado como cantor sério e como poeta e como letrista de coisas sérias – que não era verdadeiramente a especialidade dele. Ele era genial num certo tipo de escrita leve, depois quando se abalançava para as coisas mais pesadas atingia aí o seu principio de Peter e as coisas soavam às vezes pouco orelhudas ou pretensiosas, demasiadamente rococó para ficarem na história.
Ele fica na história precisamente por aquilo que faz bem. Esta não é uma crítica tão forte que reporte para aquela expressão popular "Quem te manda a ti sapateiro tocar tão mal rabecão", mas pode ser adaptada "Quem te manda a ti Carlos Paião, genial autor de música e letras humorísticas irónicas e leves, perder tanto tempo e tanto esforço para ser reconhecido como cantor sério".
9. Uma história "inacreditável"
Quando ele me entregou a primeira versão do Serafim Saudade [canta], que era no fundo uma caricatura a um tipo de cantores, os músicos que tinham vindo d’”O Tal Canal” e que tinham feito comigo o Toni Silva, juntaram-se, liderados pelo Ramón Galarza, para dizerem: “Desculpa isto é mau de mais, não queremos colaborar. Isto não nos faz sentido." E eu tive de explicar qual era a intenção, a lógica, a leitura que a música tinha.
Eles, contrariadamente, lá foram fazendo. E a meio do percurso perceberam finalmente o que estavam a fazer. Ou seja, eu e o Carlos estávamos, nesse aspecto, bastante à frente do nosso tempo. O que eu não imaginava era que as coisas que ele fazia tinham no seu substrato aquela arte cintilante que faz com que a matéria se torne completamente perene.
10. Hinos de futebol, ontem e hoje
Se reparar, se num estádio puserem o “Bámos Lá Cambada”, a malta levanta-se toda e desata a cantar. E, sem desprimor para o hino actual, com alguns hinos as pessoas levantam-se e aproveitam para ir tomar café. [risos] Basta essa simples observação para perceber até que ponto esta marcha marcou indelevelmente estas provas mundiais.
Eu não tenho o direito de fazer juízos críticos sobre coisas artísticas. Não tenho esse direito. E já me enganei 300 mil vezes. Mas se me perguntar se teria escolhido aquela cantiga ["Tudo O Que Eu Te Dou", de Pedro Abrunhosa] para isto, de maneira nenhuma, por uma razão até de produção de espectáculo.
Esta música é bem construída, porque ele é um grande músico. Não é um grande cantor, é um poeta gótico, rebuscado, barroco, pessoalmente as letras dele não me tocam. Mas é um extraordinario músico e um óptimo produtor de músicas. E não a escolheria esta para este efeito porque é verdadeiramente triste, saudosa, nostálgica. Parece que é música que se toca após a derrota. Perdemos tudo, estamos pobres, mas… [imita] tudo que me dás, eu dou a ti... Estamos tristes e pobres, mas vamos estar juntos e não vamos morrer, porque é cedo para morrer. É o que eu sinto sempre quando oiço essa música.
11. Um humorista no futebol
Tenho uma história maravilhosa, precisamente passada no Dragão. Eu estava a ser recebido como um príncipe nessa recepção de homenagem ao Pedroto, e a sentir-me lindamente com aquela gente fantástica a minha volta. Nisto, chega um tipo educadíssimo, brasileiro, que me diz: "Sou um grande admirador do seu trabalho". Muito simpático. Ao meu lado também umas pessoas do FC Porto. E eu: “E o meu amigo faz o que neste contexto?".
Bem, quando eu pergunto “O meu amigo faz o quê”, há uma gargalhada geral e diz um deles: [imita sotaque] "Eh pá, este Herman José, pá, ninguém lhe chega aos calcanhares, ele é o melhor humorista do mundo. Sabeis o que é que ele acabou de perguntar ao Hulk? O que é que ele faz aqui! Ahahaha!" E acharam que era uma piada porque não lhes passou pela cabeça que eu não soubesse quem era o Hulk, que estava no auge absoluto da sua carreira.
"Som de Bola", por Maria João Cunha (jornalista) e Paulo Teixeira (sonorização). Arquivo Renascença: Ana Isabel Almeida. Ilustração: Ricardo Fortunato