Qual a resposta da Igreja aos desafios que a família enfrenta na sociedade contemporânea? Este é um dos pontos que o sínodo dos bispos dedicado à família, que começa domingo no Vaticano, se propõe analisar. Desde as ameaças económicas à “colonização ideológica”, de que o Papa Francisco fala, são vários os problemas que, na perspectiva da Igreja, a instituição familiar enfrenta.
Se é verdade que são os assuntos mais polémicos, como o acesso aos sacramentos por parte de pessoas em uniões irregulares ou o acolhimento aos homossexuais tendem a atrair mais atenção mediática, há também milhões de famílias que não são afectadas pelas ditas questões fracturantes mas que também têm desafios e dificuldades a ultrapassar.
Assunção Guedes é mediadora familiar credenciada e trabalha na associação Vida Norte, onde acompanha mulheres grávidas em situação de risco e as suas famílias. Em entrevista à Renascença, ajuda-nos a perceber que questões é que devem preocupar os bispos reunidos por estes dias em Roma para discutir o estado da família.
Da sua experiência a trabalhar com famílias, quais são as principais dificuldades que estas enfrentam actualmente?
Há dificuldades internas e dificuldades externas.
Nas dificuldades internas incluo sobretudo as dificuldades de relação, quer entre o casal, quer entre gerações. Essas dificuldades têm sobretudo a ver com dificuldades de comunicação, de incompreensão, de dificuldade de entrega uns aos outros.
Para usar uma expressão do Papa, que acho muito certeira, nós temos dificuldade em gastarmo-nos uns com os outros. Numa relação de família, conjugal ou até de relação entre pai e filho, irmãos e irmãs, sogros e noras, há dificuldade nisto, em gastarmo-nos uns com os outros, de nos dedicarmos uns aos outros. É difícil porque isso implica esquecer-me de mim e pôr o outro à frente.
Por outro lado, há dificuldades externas e que têm impacto directo e evidente nas relações familiares e aí vejo mais as questões da sociedade actual, de ritmo de vida, de exigências laborais, exigências de consumo e uma necessidade de consumo extremada, exagerada e que tem estragos evidentes nas relações.
Ao mesmo tempo, há uma dificuldade que é externa, mas que também é muito interna, que é o cansaço. O cansaço provocado por este ritmo de vida acelerado, mas que implica falta de tempo e de disponibilidade para o outro. A sociedade actual é de tal forma frenética que não nos permite estarmos uns com os outros. Estamos desaprendidos de estar uns com os outros, de simplesmente estar, sem um programa estipulado, mas simplesmente para dar tempo à relação para estarmos juntos. Isto acontece de forma mais grave nas relações conjugais, mas na família no seu todo.
Tudo isto culmina num factor mais grave, que é a solidão. Ou seja, esta confusão toda termina numa sensação individual de solidão, que vejo muito nas famílias que acompanho.
Ouvimos muito dizer que o conceito de família está a mudar. Concorda? E isso é bom, ou mau?
Podemos pegar na revolução francesa como pontapé de saída para estas mudanças familiares, mas desde então as mudanças são a um ritmo alucinante, de uma riqueza e de uma violência enormes.
Se há benefícios? Claro que há benefícios, sem dúvida. Um dos benefícios mais evidentes que vejo é uma maior proximidade das relações dos pais com os filhos. Há duas gerações as relações dos pais com os filhos era de uma distância muito grande. Hoje em dia há uma envolvência muito maior, que por um lado dá um acompanhamento e um carácter afectivo e emocional à relação pais-filhos muito mais próxima da nossa relação com Deus, por isso muito mais verdadeira e muito mais rica.
Acha que o sínodo tem dado demasiada importância a questões fracturantes e não o suficiente às famílias tradicionais?
É preciso distinguir duas coisas. Uma é o que são os assuntos em cima da mesa no sínodo dos bispos, outra é o que se fala mais através da comunicação social. Aquilo que a comunicação põe mais em cima da mesa é o que acaba por ser mais falado e, por isso, podemos estar a descurar e a descredibilizar o papel que os bispos têm em relação às famílias ditas normais e que, sim, precisam de imensa atenção, têm problemas concretos e que têm de ser vistos e pensados e reflectidos. Acredito que o sínodo não ignora essas questões.
Agora, que efectivamente a comunicação social também dá mais ênfase às questões fracturantes é natural. De facto, há muitos assuntos que são fracturantes e que são gravíssimos – no sentido de importantes –, por isso não acho que se esteja a desvirtuar importâncias, acho que o sínodo dará certamente importância às questões de ordem normal das famílias, mas acho que não pode deixar de olhar com muita seriedade, tempo e com muita reflexão para os assuntos mais quentes.
Perante os desafios que a família enfrenta hoje em dia, a proposta da Igreja é adequada?
A resposta adequada, encontraremos sempre no Evangelho, abertos à acção do Espírito Santo, olhando para o Evangelho. Digo isto por experiência de ter à minha frente inúmeras vezes situações difíceis e dramáticas de determinadas famílias, ou de determinado conjunto de pessoas, em que é difícil o que a Igreja propõe. Mas daí a dizer que a proposta que a Igreja nos faz é errada, é um caminho longuíssimo, uma coisa não é a outra.
O Papa Francisco tem falado do perigo para a família que representa a “colonização ideológica”. Como é que entende este termo e, concorda que a ameaça existe?
Acho o termo genial para explicar o que se passa. Acho que é uma expressão desafiadora. O que o Papa nos quer dizer é que esta colonização vem de fora. Quem coloniza é quem vem de fora. Aquilo que o Papa nos explica é que há ideologias diversas, inúmeras, que vêm procurar desvirtuar o conceito de família, aquilo que Deus planeou para as famílias, que é o sonho de Deus da construção de uma família fundada no amor. Há inúmeras ideologias que vêm deturpar isso e deturpar a origem da família é, no limite, deturpar a construção da sociedade.
Pode dar um exemplo dessas ideologias?
A forma como muito facilmente, na sociedade, encontramos a promoção do divórcio em vez de uma luta por um casamento feliz.
Um casamento feliz não significa um casamento baseado em alegrias e gargalhadas, mas sim um casamento fundado na confiança, no amor e na capacidade de em conjunto ultrapassar dificuldades e obstáculos. Isso é possível.
Mas o que na maioria das vezes encontramos na sociedade é o contrário, o que é claramente enganador. Promover que uma família se destrua em vez de promover que a família lute pelo seu casamento e pela sua felicidade verdadeira é enganador.