A um ano do centenário das Aparições de Fátima, a Renascença conversou com o reitor do Santuário, o padre Carlos Cabecinhas, que esta quarta-feira apresenta o programa oficial das celebrações.
O reitor destaca a actualidade e novidade de uma mensagem com um século, face às exigências actuais da fé, da cultura e da razão. O objectivo passa por “chegar a outros que habitualmente não vêm a Fátima”, afirma o padre Carlos Cabecinhas. A crise dos refugiados, a perseguição aos cristãos e a visita do Papa Francisco ao Santuário são outros dos temas em destaque nesta conversa.
É reitor do Santuário de Fátima há cinco anos e assumiu esta responsabilidade em pleno percurso de preparação para o centenário das Aparições. Está contente com o caminho até agora percorrido?
Sim. Só posso estar contente com o caminho percorrido até agora porque, por um lado, este itinerário de sete anos de preparação e celebração do centenário [das Aparições] nos tem possibilitado a nível de vivência no Santuário de ir aprofundando a própria mensagem de Fátima, de ir vivendo já o dinamismo próprio deste tempo festivo e vai-nos aproximando daqueles que são os dois anos mais decisivos, 2016 e 2017.
O que espera, verdadeiramente, destas celebrações?
Espero verdadeiramente que, por um lado, seja um momento particularmente festivo e feliz por este dom que significam as aparições de Nossa Senhora em Fátima e a mensagem que ela aqui nos deixou, mas que sejam também um desafio. Este percurso feito até agora tem sido fundamental para reaprofundarmos a mensagem de Fátima naqueles que são os seus núcleos teológicos fundamentais. Espero que este aprofundamento possa depois ter consequências e reflexos, quer na vivência do Santuário, quer na vivência dos próprios peregrinos aqui ou nas suas terras de origem.
Mas 100 anos são muitos anos. Um século depois das Aparições, qual é a novidade?
Creio que a novidade está, fundamentalmente, naquilo que está no centro da mensagem de Fátima. A novidade hoje, como a novidade há 100 anos, foi esta da centralidade de Deus na vida dos próprios crentes. Foi isso que Nossa Senhora transmitiu aos pequenos videntes, é isso que ela continua a dizer-nos hoje: É que Deus hoje, nas condições e dificuldades actuais, continua a estar no centro da nossa vida e, a partir desse centro, a dar um sentido e uma luz novos a tudo aquilo que fazemos e vivemos.
Foi um momento dramático aquele em que Nossa Senhora veio falar, como dizia o Papa S. João Paulo II, foi a dor dos filhos que fez gritar o coração da Mãe aqui em Fátima. Mas ainda hoje é essa a perspectiva e é essa a novidade. A novidade é que, diante dos novos desafios, das novas situações dramáticas, o coração da Mãe continua a gritar e a dizer-nos que Deus tem de estar no centro para podermos ver com outra luz o mundo que nos é dado viver.
É isso que explica que tantos milhares de peregrinos continuem a ir a Fátima provenientes dos cinco continentes?
Sem dúvida. A minha percepção é que, se Fátima hoje é o centro de peregrinação que é, porque quem vem tem a oportunidade de fazer essa experiência profunda de fé. Se assim não fosse, o encanto de Fátima seria bem menor. Aquilo que continua a atrair, que leva a que tantos peregrinos venham com tanto esforço e sacrifício, tantos deles a pé, é precisamente esta percepção de que, aqui, podem fazer uma particularmente profunda experiência de Deus e o Santuário marca como esse lugar de experiência espiritual diferente, particular, intensa.
Mas essas pessoas não podiam fazer essa experiência nas suas terras? Que mistério é este? Há uma espécie de íman aqui?
Eu não diria que seja uma experiência de íman, mas sem dúvida que estes lugares atraem. Têm essa capacidade simbólica de ser lugar onde Deus continua a falar, hoje. Podemos dizer que Deus, aquilo que diz aqui, dirá também na casa de cada um de nós. E sem dúvida que o diz. Simplesmente, este lugar, a particularidade que tem é de nos ajudar a ouvir e quando vimos, possivelmente, já vimos com outra abertura de espírito para poder ouvir o que Deus nos tem a dizer. E tantas vezes em nossa casa falta-nos o ambiente que nos ajuda a ter essa abertura.
A mensagem de Fátima dá origem a muitas leituras, interpretações sociológicas, políticas, teológicas. Há também uma forte religiosidade popular. Como é que um reitor de Fátima se entende no meio de tantos ingredientes?
Eu penso que estes ingredientes ajudam-nos, conjuntamente e de forma harmónica, a compor aquilo que é o específico de Fátima. No recente Jubileu dos reitores e operadores de peregrinações, o Papa Francisco chamou-nos à atenção para a necessidade do acolhimento e de sabermos acolher esta espiritualidade popular. A piedade popular que tantas vezes se manifesta nos santuários, e neste santuário em concreto, não é algo de que devamos ter medo. Manifesta, muitas vezes, o sentido de fé do povo crente. Precisa, uma vez ou outra, de ser conduzido pelo Evangelho, mas essa é precisamente a função do Santuário, de procurar que a luz do Evangelho vá conduzindo sempre aqueles que aqui vêm e vá ajudando a purificar as próprias intenções e motivações daqueles que procuram este lugar.
Mas o senhor reitor também é ponte entre essa realidade de Igreja e a outra que inclui teólogos e filósofos. É difícil?
Eu não creio que seja difícil. Temos de perceber sempre os interlocutores. O povo cristão que vem a Fátima não espera, propriamente, encontrar aqui uma cátedra de Teologia. Espera encontrar aqui um momento e o espaço que lhe permita viver a sua fé e fazer uma forte experiência de fé. o que não dispensa essa reflexão teológica e, por isso, é que o Santuário, para quem quer fazer esse aprofundamento teológico, não deixa de ter também um conjunto de iniciativas que procuram dar um passo mais na reflexão e no aprofundamento da própria fé.
Aprofundar as motivações racionais da fé que se verificam também através das aparições...
Sem dúvida. A fé não é irracional, vai para além da razão, mas a preocupação do Santuário de Fátima tem sido sempre essa de provocar essa reflexão, essa racionalização da própria mensagem de Fátima, uma visão teológica que nos ajude a perceber a própria coerência da mensagem no seu todo.
A um ano do centenário, a imagem da Virgem peregrina anda a percorrer todas as dioceses do país e, por onde passa, congrega multidões, quem sabe até gente que não vai à missa ao domingo. Como vê este fenómeno?
Nós já esperávamos e estávamos convencidos que assim seria. Quando promovemos e apresentámos aos senhores bispos esta iniciativa da visita da imagem peregrina, que acolheram com grande alegria, estávamos já convencidos que seria um momento de grande festa junto da imagem peregrina. Porquê? Nossa Senhora tem esta capacidade de atrair, muitas vezes, até aqueles que estão longe, que não têm um vínculo que perderam o sentido de pertença à própria Igreja. Muitas vezes, neste ambiente a necessitar de nova evangelização para muitos dos nossos contemporâneos, a devoção Mariana é o único fio que ainda os liga à fé cristã e, por isso, a passagem da Virgem Peregrina é uma ocasião única para poder tocar, tantas vezes, estes que estão longe. E parece-me uma ocasião particularmente importante para podemos lançar-lhes um desafio, a que não acompanhem apenas festivamente estes momentos da visita da imagem peregrina, mas que a partir daí possam aprofundar também a sua vivência de fé. Independentemente destes que estão mais longe, a verdade é que esta tem sido uma peregrinação festiva de Nossa Senhora a visitar as dioceses, convidando também a que, depois, visitem o seu Santuário.
E se isto é assim, agora, imagine-se daqui a um ano...
A minha expectativa é precisamente essa, de que aqueles que, com tanta alegria agora acolhem Nossa Senhora, possam vir com a mesma alegria depois a este Santuário.
Estatisticamente, há hoje menos peregrinos do que já houve?
Estatisticamente, os dados indicam que não temos menos peregrinos. Tivemos um pico de peregrinos quando se celebraram os 90 anos das Aparições, porque a celebração é, por definição, um momento alto, mas estamos convencidos que a celebração do centenário não só vai igualar, mas ultrapassará esse número de peregrinos.
O Ano da Misericórdia, não desvia as atenções em relação ao percurso do Centenário?
De forma alguma. A misericórdia é a palavra-chave para a compreensão da mensagem de Fátima. Por isso, muito naturalmente, não sentimos que o Ano da Misericórdia sirva de concorrência que possa desviar deste percurso, mas pelo contrário, como um aspecto que nos ajudará a aprofundar e a viver com mais intensidade este percurso. O Ano da Misericórdia será também, devidamente, assinalado no Santuário, não como algo paralelo àquilo que estávamos a pensar fazer, mas como algo que integra tudo aquilo que já faríamos, porque a Misericórdia nos conduz nesta celebração e nesta vivência da mensagem de Fátima.
No programa das comemorações, há uma forte vertente cultural e o bispo de Leiria-Fátima insiste muito na “beleza do rosto de Deus”. Qual é a razão, é também um modo de “cativar” os que estão mais afastados?
O programa está pensado por grandes momentos que são marcados pela peregrinação e pela celebração da fé. É isso que significa celebrar as aparições de Fátima. O que acontece é que entendemos que há outra linguagem, que há uma linguagem cultural, que pode chegar a todos estes, mas que pode chegar a outros que habitualmente não vêm a Fátima. A nossa preocupação, que tem uma preocupação teológica - e é tão sublinhada pelo Sr. D. António Marto, em que a arte e a cultura nos fazem experimentar a beleza de Deus – tem também esta dimensão evangelizadora, que é atrair e chamar a atenção para Fátima daqueles que, habitualmente, para Fátima não prestam atenção.
Portanto, vamos ter um inaudito programa cultural, misturado com imensas manifestações musicais que não é costume…
Temos, de facto, um programa que pensamos ser exigente e inovador a esse nível, com muitas propostas musicais, mas também com diversidade de disciplinas artísticas, que pretendemos que possam falar, também dessa forma, de Fátima. Uma forma menos usual, mas nem por isso menos significativa.
Fátima e o Papa são inseparáveis. Desde Pio XII - pelo menos, de forma pública e intensa - e depois com Paulo VI para os 50 anos das aparições, João Paulo II por três vezes e Bento XVI. Francisco já disse várias vezes que quer vir em 2017, mas ainda não confirmou. Tencionam reforçar o convite? Existem alguns sinais?
Ele já confirmou ao bispo da diocese e autorizou ao bispo da diocese a tornar pública essa confirmação de que vinha. Neste momento, o que falta é a confirmação do programa. Programa não o temos, efectivamente. Mas também, a esta distância, habitualmente não há programa estabelecido. O que o Papa Francisco disse a D. António Marto, em audiência privada, foi que viria se Deus lhe desse vida e saúde; e que podia tornar público o anúncio e confirmar a sua vinda. Na recente visita “ad limina” dos bispos portugueses, foi de novo perguntado ao Papa se viria. O Papa disse aos nossos bispos que “sim”, que viria a Fátima, mas nada está estabelecido sobre o programa. Não sabemos se virá a Fátima no 12 e 13, se fará uma visita pastoral a Portugal incluindo a visita a Fátima. Tudo isso, ainda está por definir.
A presença, a 13 de Outubro deste ano, do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano é já uma antecipação? Acha que o Papa o manda cá vir para ver como é?
(Risos) Não sei se o Sr. Cardeal Parolin vem ver como é, mas sem dúvida que, para nós, é uma preparação para a vinda do Papa Francisco.
Em relação aos videntes, será possível a canonização de Jacinta e Francisco para 2017?
Penso que ainda é possível a canonização. Tenho dito, nos últimos anos, que, na perspectiva do Santuário, a canonização não tem de ser em 2017. O que esperamos é a canonização dos videntes. É claro que, se for em 2017, óptimo, para nós seria mais um motivo de festa, mais um motivo de alegria. Penso que ainda será possível e legítimo esperar. Mas se não for, não deixaremos de celebrar festivamente e de continuar a rezar pela canonização dos pastorinhos.
E quanto à beatificação da Irmã Lúcia?
Em relação ao processo da Irmã Lúcia, o processo ainda está na fase diocesana, portanto, ainda está um pouco atrasado, no sentido em que é um pouco mais moroso. A esse nível, parece-me pouco realista esperar que, até 2017, haja novidades.
O Papa Bento XVI, em 2010, na homilia da missa de 13 de Maio, falou da missão profética de Fátima, a partir do exemplo de consagração dos pastorinhos. Esta mensagem não é hoje difícil de fazer passar num contexto tão secularizados?
Creio que é difícil, mas está também aí o seu encanto. No nosso contexto secularizado ou as propostas que Deus nos faz são encaradas com radicalismo, ou então, acabam por ser perder no contexto de tantas outras palavras que vão voando ao nosso encontro, em cada dia. É, sem dúvida, uma proposta exigente, mas o exemplo dos Pastorinhos vem-nos, precisamente, dizer que é possível, que é realista hoje pedi-lo. Sem dúvida que temos consciência de que essa consagração a Deus, no nosso dia a dia, é tudo menos fácil, mas a beleza do desafio está precisamente aí: em percebermos que é um desafio que vale a pena e que é exigente.
Nessa mesma homilia, Bento XVI também formulou um desejo: que estes sete anos, desde 2010 até 2017, pudessem apressar o anunciado triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima Trindade. Qual é o seu comentário? Como estamos, em relação a este triunfo do Imaculado Coração de Maria?
A promessa do Imaculado Coração de Maria faz parte da mensagem de Fátima, portanto, faz parte da dimensão profética desta mensagem. Quando o Papa Bento XVI nos diz que espera que estes sete anos que estamos a viver nos ajudem a apressar esse triunfo, não diz que esse triunfo será em 2017, diz-nos que essa vivência, o acolher esse desafio, apressará – ou pode apressar – o triunfo do Imaculado Coração de Maria, que é a grande promessa de Fátima. E, portanto, o que pretendemos com as nossas iniciativas, é contribuir para esse triunfo do Imaculado Coração de Maria, para o dar a conhecer como transparência da misericórdia de Deus, e que nos convida a fazer essa caminhada até Deus. Por algum motivo, o grande lema desta comemoração do centenário é, precisamente, “o meu Imaculado Coração conduzir-vos-á até Deus”. Como promessa de Nossa Senhora.
Portanto, isso também implica um acto de liberdade por parte de cada um dos peregrinos e dos fiéis, terá de ser uma relação a dois? Ou seja, o desafio por um lado e, por outro, o mistério da liberdade de cada um?
O mistério da liberdade de cada um está sempre presente em toda a mensagem de Fátima, tal como em todo o dinamismo da vida cristã. Mesmo a grande promessa do triunfo do Imaculado Coração de Maria, exige sempre o contributo da nossa colaboração, das nossas liberdades. As nossas liberdades limitadas, com todas as dificuldades e dramas inerentes, contribuem para esse triunfo, ou, em última análise, podem recusar esse triunfo. Aliás, n comentário que o então cardeal Ratzinger faz à terceira parte do segredo de Fátima, chama a atenção precisamente para isso, para o lugar da nossa liberdade, dizendo-nos que não é um filme do que vai acontecer, mas uma chamada de atenção do que pode acontecer, se a nossa liberdade não colaborar com Deus.
Mas também nestes sete anos, a violência no mundo aumenta, há cada vez mais cristãos perseguidos e mortos. Como vê estes acontecimentos à luz da mensagem de Fátima, que é uma mensagem de paz. Quer dizer que ainda há muito por cumprir?
Eu creio que todas esta cadeia de violência que, diariamente, nos entra pelos olhos e que nos leva a tomar esta consciência dramática das situações em que vive o mundo actual, nos chama à atenção para a premência e actualidade desta mensagem, porque o que esta mensagem de Fátima nos vem dizer é que Deus não ignora o nosso sofrimento, Deus não nos esquece nas situações dramáticas, bem pelo contrário, vem ao nosso encontro, mas essas situações dramáticas exigem sempre a nossa colaboração. Estas situações de violência, esta III Guerra Mundial em episódios, para utilizar a expressão do Papa Francisco, vem-nos lembrar que Deus não nos esquece, esta perseguição à Igreja vem dizer-nos que Deus não está a dormir, não está surdo diante do sofrimento daqueles que o seguem, mas que desafia cada crente a confiar nele, mas também a procurar concretos caminhos de paz no seu dia-a-dia.
Mas aqui, neste dia a dia de Portugal, que é um país de brandos costumes, como se vive isso mesmo que está a dizer?
Eu creio que isso se vive, antes de mais, na solidariedade pela oração. Um dos aspectos fundamentais da mensagem de Fátima é a oração e o Papa Bento XVI, no comentário à terceira-parte do segredo, chama à atenção para a força da oração que tantas vezes ignoramos e esta solidariedade que nos é pedida é uma solidariedade pela oração por esses cristãos perseguidos, o não esquecermos, nunca, diante de Deus esses a quem estamos ligados pela fé e que são perseguidos pelo testemunho de fé que dão. Passa pela solidariedade concreta e, neste caso, o acolhimento aos migrantes e aos refugiados que vão chegando ao nosso país. Passa por não cairmos na indiferença diante do sofrimento alheio. Em situações de crescente violência como estas, o grande perigo é aquele para o qual o Papa nos tem chamado à atenção, o perigo de nos tornarmos indiferentes ao mal, de deixarmos a indiferença vencer e que esta violência se vá banalizando e se tornando o dia-a-dia.
Em relação ao acolhimento de refugiados, existe algum caso no Santuário, considerando o pedido que o Papa tinha lançado a todas paróquias e santuários?
O Santuário de Fátima manifestou, desde a primeira hora, a sua disponibilidade, tem instalações preparadas, inscrevemo-nos nas instâncias que fazem essa coordenação, até agora não nos foi pedido que acolhêssemos refugiados, mas a nossa disponibilidade mantém-se inalterada.
O que espera da presença do Papa Francisco em 2017?
O Papa Francisco é um homem de surpresas, é alguém que nos vai chamando à atenção para o modo radical a que somos chamados a viver a nossa fé. O que eu espero é que a sua presença aqui no Santuário, em Maio [de 2017], seja, por um lado, o coroar desta celebração do centenário das Aparições, mas seja também a vinda dessa voz profética que nos chama à atenção para o modo como devemos viver a mensagem que Nossa Senhora aqui nos deixou.