A divisão entre xiitas e sunitas, chave para compreender a região
Para se compreender a importância do assassinato de Qassem Soleimani, general iraniano e líder da Guarda Republicana do Irão, é preciso compreender a dinâmica da geopolítica no Médio Oriente.
O Médio Oriente é o berço e principal foco de influência do islão e a religião afeta quase tudo o que se passa naquela parte do mundo. Mas o islão não é um bloco uniforme. As duas grandes correntes muçulmanas são o islão sunita e o xiita.
Os sunitas são largamente maioritários em todo o mundo. Os principais países sunitas no Médio Oriente e proximidades são a Arábia Saudita e a Turquia, dois países aliados dos Estados Unidos e que, independentemente ou por força dessa aliança, têm considerável poder militar e influência regional. Já o Irão é a grande potência xiita do mundo muçulmano e especialmente no Médio Oriente.
Por regra, as linhas de alianças e inimizades que dividem o Médio Oriente são linhas de divisão religiosa que frequentemente atravessam os próprios países. Se o Irão e a Arábia Saudita são quase uniformemente xiita e sunita, respetivamente, outros estão divididos e aí é comum ver o Irão a apoiar forças xiitas e a Arábia Saudita, Turquia e outros países sunitas a apoiar as forças sunitas.
Qual era o papel de Soleimani neste contexto?
O papel do general Soleimani não pode ser subestimado. Enquanto número dois do regime e líder da força de elite Al-Quds ele era responsável pelas atividades e influência internacional da Guarda Republicana, a força mais leal ao regime iraniano.
Para se ter uma ideia, o envolvimento do Irão já foi confirmado, ou é suspeito, na guerra civil da Síria, onde apoia o regime de Bashar al-Assad, juntamente com a Rússia; no Líbano, onde apoia, arma e financia a milícia xiita Hezbollah, que ao longo dos anos se estabeleceu como a principal força política e paramilitar do país; na Palestina, onde arma e financia o Hamas na sua eterna luta contra Israel; no Iémen, onde arma e financia as forças dos Houthis, que são xiitas, contra o Governo que é apoiado por sunitas; no Bahrain, onde apoia a maioria xiita nos seus protestos contra o regime, que é sunita e, sobretudo, no Iraque, onde a população xiita foi oprimida durante anos pelo regime sunita de Saddam Hussein.
No tempo de Saddam Hussein o Iraque e o Irão eram inimigos mortais, mas com a queda do regime iraquiano, depois da invasão americana, os xiitas conseguiram alcançar o poder e o país tornou-se permeável à influência iraniana, um efeito secundário que os americanos certamente não pretendiam. Ao longo dos últimos anos, para além de financiar e armar várias milícias xiitas dentro do Iraque, que levaram a cabo uma insurreição de anos contra as forças americanas no país, Teerão exercia influência direta sobre os primeiros-ministros iraquianos.
Ora, toda esta vasta rede de influências dependia diretamente de Soleimani.
Como é que o assassinato de Soleimani afeta a região?
Tudo depende do carácter e da capacidade do sucessor de Soleimani, Esmail Qaani, que foi nomeado logo na sexta-feira para o cargo.
Se ele for capaz de retomar as rédeas e comandar o mesmo respeito e lealdade que o seu antecessor, então a influência iraniana poderá manter-se, mas se não é possível que venha a diminuir.
Seja como for, há uma coisa que muda radicalmente. Qualquer pessoa que ocupe o cargo ficará a saber que caso continue as atividades fora das fronteiras do Irão terá a cabeça a prémio e arrisca ser morto da mesma forma que Soleimani. Nesse sentido o ato dos Estados Unidos altera radicalmente a realidade local.
Qual era o objetivo dos Estados Unidos?
Com a informação disponível, que é escassa, parece que os Estados Unidos estão a tentar com este assassinato encostar o Irão à parede e obrigá-lo a escolher uma de duas vias, ambas potencialmente benéficas para Washington.
Uma possibilidade é o Irão compreender que já não pode continuar a levar a cabo guerras por procuração e esperar sair incólume. Teerão poderá, neste cenário, recuar e tentar preservar o regime nacional em vez de insistir em exercer a sua influência em todos os conflitos e países da região.
Outra alternativa é que o Irão encare este gesto como aquilo que foi, na prática: um acto de guerra, e responder na mesma medida, dando assim a desculpa aos Estados Unidos para intervir militarmente no próprio Irão, para deitar abaixo o regime. Para já, Washington está a enviar mais três mil homens para o Médio Oriente, mais especificamente para o Kuwait, como medida preventiva.
Donald Trump deixou claro na sexta-feira, com uma mensagem no Twitter, que não está disposto a voltar à mesa das negociações, dizendo que: “O Irão nunca ganhou uma guerra e nunca perdeu uma negociação”.
Como é que o Irão irá responder?
A resposta do Irão a esta provocação americana será decisiva para o desenlace deste conflito. Parece evidente que uma guerra aberta seria absolutamente desastrosa para Teerão, significando quase certamente o fim do regime. Como se viu no Iraque, com Saddam Hussein, isso pode não ser bom para a região. Mas mesmo que Teerão insista em levar a cabo uma guerra contra os Estados Unidos e seus aliados através de milícias noutros países, isso poderá a partir de agora, ser entendido por Washington como desculpa suficiente para mais ataques deste género.
À primeira vista a única resposta viável para o Irão é recuar, pelo menos por um período de tempo, esperando que a tempestade passe e que haja, por exemplo, uma mudança de administração na Casa Branca. É de sublinhar que há eleições nos Estados Unidos este ano, o que poderá ter desempenhado o seu papel na decisão de Trump de atacar Soleimani.
Seja como for, pelo menos em termos de retórica a resposta será duríssima. O regime prometerá destruir o “grande satanás” e queimar-se-ão bandeiras americanas nas ruas de Teerão.
Mas há outro fator a ter em conta. Embora o regime faça tudo para o esconder, há uma grande oposição à República Islâmica dentro do Irão. Estima-se pelo menos nas centenas o número de manifestantes mortos pelas forças de segurança leais ao regime, entre os quais a temida Guarda Republicana que era chefiada por Soleimani.
Qualquer mostra de fraqueza por parte do regime iraniano poderá encorajar a dissidência interna, pelo que o Irão está agora em terreno muito pouco firme e terá de caminhar com muito cuidado para garantir a sua sobrevivência.
Será interessante ver como é que a Rússia reage e se estará disposta a arriscar defender abertamente o regime iraniano. Em conflitos recentes os russos não têm hesitado em tomar partido contra os interesses americanos e ocidentais, mas um apoio inequívoco e armado ao regime iraniano nesta altura elevaria o conflito para um nível muito perigoso. Convém recordar que mesmo na Síria, onde está envolvida, a Rússia não se mostrou particularmente preocupada quando Israel lançou ataques contra oficiais iranianos. A aliança entre Moscovo e Teerão é de interesses, pois de resto o Governo teocrático persa e Vladimir Putin têm muito pouco em comum.
Como é que têm reagido os países vizinhos?
Os países aliados dos Estados Unidos têm reagido com mensagens de apoio. Israel, sobretudo, não perdeu tempo em dizer que Washington tem todo o direito a defender-se. Israel é o país que mais tem a perder com a eventual obtenção de armas nucleares pelo regime iraniano e não quer outra coisa que não a queda do regime dos ayatollahs.
A Arábia Saudita ainda não reagiu formalmente, mas ninguém em Riade estará a chorar a morte de Soleimani. Uma das suas guerras por procuração travava-se no Iémen, precisamente contra uma coligação liderada pelos sauditas.
Outro aliado dos Estados Unidos na região, os Emirados Árabes Unidos, escusou-se a criticar o ataque americano, optando por uma postura mais neutra. “À luz da alteração rápida dos desenvolvimentos na região, é necessário colocar a sabedoria, o equilíbrio e as soluções políticas acima da escalada do confronto”, escreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros Anwar Mohammad Gargash.
O Iraque reagiu com natural desalento, lamentando o desrespeito dos americanos para com a soberania do seu país e temendo que o gesto de Trump leve a uma guerra devastadora com o Iraque.
O regime sírio, aliado do Irão e que tem beneficiado da intervenção das forças de Soleimani na sua guerra civil, apelidou o ataque americano de “cobarde”, dizendo que apenas vai “fortalecer a determinação em seguir o exemplo dos líderes da resistência martirizados”.
Interessante é o silêncio da Turquia. Os turcos e os americanos estão a atravessar um período de tensão nas suas relações, por causa da Síria, mas têm em comum a inimizade para com o Irão. Nesta fase Erdogan não deverá querer parabenizar nem defender Trump, mas não está certamente devastado com a notícia da morte de Soleimani.
Não sendo propriamente da região, a Rússia é claramente uma parte interessada, uma vez que colaborava com Soleimani e as suas forças em pelo menos dois teatros de guerra, a Síria e a Líbia, em ambos os casos em estreita ligação e com assinalável sucesso. O Ministério dos Negócios Estrangeiros diz que “Soleimani servia a causa da proteção dos interesses nacionais do Irão com devoção. Expressamos as nossas mais sinceras condolências ao povo iraniano”.
Moscovo acrescenta que o assassinato do general foi “irrefletido” e que vai incendiar as tensões em toda a região.
(Notícia atualizada às 9h17 de sábado)