"Vamos ter mortalidade significativa em cuidados intensivos", diz médico na frente de batalha
24-04-2020 - 19:33
 • Maria João Costa

Roberto Roncon, coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João, defende medidas progressivas para o “novo normal”. O médico internista admite que um segundo pico deixaria equipas médicas “em estado crítico” e teme que Portugal falhe nesta fase. Mais estados de emergência? “Nada substitui a responsabilidade de cada português”, diz.

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A voz calma com que atende o telefone não deixa adivinhar que Roberto Roncon vive estes dias na linha da frente da batalha da guerra “de grande desgaste” contra a Covid-19. Este médico internista é o coordenador do Centro de Referência de ECMO do Hospital Universitário de São João, no Porto. Esta sigla, ECMO, é inglesa e designa o equipamento que, fora do corpo, substituiu a oxigenação do coração e dos pulmões e que agora muito tem ajudado os doentes Covid-19 internados nos cuidados intensivos.

Em entrevista à Renascença, Roncon mostra-se preocupado com a fase que temos pela frente. Defende um aliviar progressivo das medidas restritivas, mas teme que falhemos agora. Sabe que as equipas médicas não aguentariam um segundo pico. Este profissional, que cuida de internamento longos provocados pelo vírus, diz que aprende mais com as derrotas do que com as vitórias.

Considera que o pior já passou?

Temos que ter uma mensagem de esperança, porque sem esperança não conseguiríamos ver o Norte, mas também temos de ser realistas. Estamos ainda numa fase se sobrecarga dos cuidados de saúde e, em particular, dos cuidados intensivos. Neste momento, temos mais doentes internados nos cuidados intensivos, sobretudo aqui no Norte de Portugal, do que é habitual nesta fase do ano, devido à Covid-19.

E como estão a responder os serviços de saúde?

São doentes que provocam uma sobrecarga ou saturação dos cuidados de saúde, não só pelo número elevado, mas também pelo tempo que estes doentes precisam. São normalmente doentes que estão muitas semanas em cuidados intensivos. Estou preocupado com a atual situação.

Por outro lado, acho que temos de forma coletiva manter este desígnio nacional de respeitar as orientações da Direção-Geral da Saúde e governamentais, no sentido de que o final do estado de emergência seja progressivo e não seja acompanhado por comportamentos individuais menos prudentes. Se nós já estamos numa fase de sobrecarga, se tivermos um segundo pico, podemos entrar num estado crítico e é isso que devemos evitar.

Defende uma saída mais lenta do estado de emergência?

Devemos tentar que esta crise seja resolvida ao longo de semanas de forma controlada, com alguma sobrecarga dos serviços de saúde, mas sem caos. É esta a mensagem, de esperança, mas também de responsabilidade para que consigamos continuar nesta senda de controlo da situação, dentro de uma grande sobrecarga dos serviços de saúde, como não poderia deixar de ser.

Como está o ânimo das equipas com que trabalha no Hospital de São João?

Por um lado, a sua dedicação inspira-me. Tenho tido o privilégio de trabalhar com colegas e todo o tipo de profissionais de saúde que têm tido uma generosidade e disponibilidade invulgares. Penso que isso é uma caraterística muito portuguesa. Nós sabemos responder aos desafios.

Mas, obviamente, estamos um bocadinho cansados porque estamos nesta guerra há mais de um mês. É uma guerra de grande desgaste e como é evidente estou preocupado com o novo normal.

Como será esse novo normal?

O novo normal é nós, até à descoberta da vacina, termos que conviver com o vírus. Não sabemos quando é que a vacina vai chegar, que tipo de proteção nos vai dar, quantas estirpes do vírus é que temos, se a vacina é eficaz para conseguirmos proteção para todas as estirpes.

Há aqui muitas incertezas. Obviamente que este novo normal preocupa-me porque, muitas vezes, é aí que nós falhamos. Somos muito bons no espírito inicial de generosidade e de dedicação e depois, quando as coisas entram numa rotina e normalização, muitas vezes é aí que as coisas podem correr menos bem.

Esse risco é muito real em Portugal?

As pessoas estão já um pouco cansadas, continuam com a mesma generosidade, mas o grande desafio é o que aí vem.

Vem aí o calor, a vontade de sair, ir para a praia e as pessoas estão a ficar saturadas de estarem em casa. De que forma é que devem ser levantadas as medidas restritivas do estado de emergência?

Não existe uma resposta antecipadamente correta a essa questão. Primeiro, as coisas têm corrido bem e temos sido um bom exemplo para o mundo desenvolvido. Acho que isso deve ser um motivo de orgulho coletivo de todos os portugueses.

Em segundo lugar, por mais estados de emergência que se decretem nada substitui a atitude de responsabilidade de cada português, por isso é tão importante o papel da comunicação social na partilha daquilo que é a vivência desta situação de sobrecarga dos serviços de saúde, para que as pessoas percebam que esta doença é para levar a sério.

No entanto, a economia não pode estar parada, porque senão corremos o risco de ter também, por essa via, o colapso da sociedade. Isto é um equilíbrio entre o controlo da doença, da economia e de todo o tecido social. É desse equilíbrio que pode surgir algo de bom nos próximos meses.

Defende a maior responsabilidade de cada um perante o fim do estado de emergência.

Queria só chamar a atenção para dois aspetos que os decisores políticos vão ter em conta, que é, por um lado, temos muito que aprender com os outros, por vários motivos, porque aprendemos sempre com os outros países; e por outro porque temos esta felicidade de estarmos umas semanas atrasados em termos epidemiológicos em relação a alguns países.

Devemos aprender com o que vai correndo bem, e menos bem, nos outros países para não repetirmos os erros e prosseguir a virtude.

Que exemplos e que países devemos olhar?

Queria chamar a atenção para o exemplo alemão, que é importante seguir de perto pela forma como a economia está a ser reativada. Devemos olhar para a Alemanha e ver o que corre bem e menos bem, para tentar seguir o caminho da vitória e do sucesso.

Outro aspeto importante, é que estamos sempre a queixar-nos que temos um interior despovoado, e um litoral privilegiado. Temos de facto uma assimetria de densidade populacional do interior para o litoral. Será que isso não poderia ser utilizado de forma a testar progressivamente a abertura da economia e da sociedade? Poderia ser uma forma inteligente de progressivamente ir testando o impacto nos cuidados de saúde, no alívio de alguma destas medidas, e assim controlar melhor este reinício e reabertura que vai ter que acontecer mais cedo ou mais tarde. Não vamos poder vive eternamente em estado de emergência, nem é desejável para ninguém!

Há mais de um mês na frente de batalha, consegue fazer um balanço?

Só no final. O que posso dizer é que fiquei muito preocupado com os resultados clínicos publicados, quer na China, quer nos Estados Unidos da América. Estamos a falar de uma doença com uma mortalidade elevadíssima nos cuidados intensivos.

Foi publicado, anteontem, um estudo numa das principais revistas científicas médicas que descreve uma mortalidade de 88%, em Nova Iorque, nos doentes que estão em cuidados intensivos e precisam de ventilação mecânica evasiva. Como compreende coloca uma grande apreensão em todos nós.

São taxas que acontecem em Portugal?

Devo dizer que temos tido resultados muito melhores do que esses, mas temos a perceção que vamos ter uma mortalidade significativa, porque estamos a falar de uma terapêutica que, infelizmente, neste momento não tem um tratamento específico. Temos só tratamento de suporte e mesmo esse, não sabemos se é o mais adequado. É uma doença nova.

Tem tido mais derrotas do que vitórias?

Temos tido algumas vitórias e algumas derrotas. Penso que devemos aprender muito mais com as derrotas, do que com as vitórias, porque são elas que nos ensinam o que temos para melhorar. Graças a Deus, temos tido a felicidade de ter resultados que são muito melhor e mais animadores do que aquilo que tem sido descrito nos EUA, China e Itália.

Mas deixe-me dizer-lhe que isto, não é só mérito dos médicos e profissionais de saúde, mas sim uma vitória coletiva. Não tenho dúvidas que se tivéssemos chegado ao caos a que se chegou em algumas regiões da China, Norte de Itália e algumas regiões dos Estados Unidos é evidente que teríamos os péssimos resultados que eles tiveram.