Foi com uma reflexão sobre a História, sobretudo a História recente de Portugal, com pedidos de precaução e justiça que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, marcou a sessão solene da celebração dos 47 anos da Revolução do 25 de abril. Um discurso mais longo do que lhe é habitual e que deu a Marcelo aquilo que tem sido muito pouco habitual com este Presidente: o aplauso unânime das bancadas parlamentares.
“Que o 25 de Abril viva sempre como gesto libertador e fundador da História. Que saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem alibis, nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados, querendo muito mais e muito melhor. Não há, nem nunca houve um Portugal perfeito, como nunca houve um Portugal condenado. Há e haverá sempre um só Portugal, um Portugal que amamos e de que nos orgulhamos para lá dos seus claros e escuros, porque nós somos esse Portugal”, concluiu o Presidente da República, num discurso em que começou por alertar para os diferentes olhares que é preciso ter e compreender.
“Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado que a maioria das vezes não nos é fácil entender e sabendo que outros vão olhar com os olhares do futuro”, disse o Presidente referindo os 13 anos de Guerra Colonial e reconhecendo que há nos olhos de hoje um “olhar personalista que se foi apurado e enriquecendo, representando um avanço civilizacional” no que diz respeito à recusa do racismo e da xenofobia e no reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
Porque os olhares não são os mesmos, Marcelo fala numa “missão ingrata” que é. “Julgar o passado com os olhos de hoje sem exigir nalgumas situações aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores agora para nós universais”. Por isso, o Presidente alerta que o “revistar a História exige algumas precauções”.
As precauções do olhar
A primeira precaução que o Presidente elencou é a de não levar as consequências do olhar de hoje sobre o que aconteceu há séculos ou décadas ao ponto de passar de “um culto acrítico, triunfalista, exclusivamente glorioso” da História de Portugal para “uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela”. O passado é bem mais complexo. E aqui deu o exemplo de D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil para mostrar como uma só personalidade pode ser vista de tantas formas diferentes
A segunda precaução é olhar a História de vários ângulos, sobretudo no que diz respeito ao passado mais imediato de Portugal. E isso implica não olhar para o passado só com os olhos do “antigo colonizador”, mas também com “olhos dos antigos colonizados, tentando perceber como foram vendo, julgando e sofrendo”.
A terceira precaução – “a mais sensível de todas, por respeitar a tempos muito, muito presentes” – tem a ver com o olhar de diferentes idades e as diferentes “paixões” que o passado suscita. Os portugueses que têm menos de 50 anos não conheceram o Império Colonial. “O seu juízo é, naturalmente, menos emocional, menos apaixonado”, disse o Presidente, admitindo que assim não seja nos jovens dos países que alcançaram a independência e que vieram décadas conturbadas nos tempos que se seguiram.
Já para os portugueses com mais de 55 anos, “revistar a infância ou a juventude é mais desafiante”, quer a tenham vivido em Portugal ou nas antigas colónias. “Para todos eles, o juízo é tão complexo como complexa foi a mudança histórica que neste dia invocamos”, disse o Presidente.
A complexidade do 25 de abril
Na segunda parte do discurso, Marcelo foi apontando a complexidade do olhar sobre a Revolução do Cravos e o Portugal do presente, aproveitando para ir enviando recados sobre, por exemplo, o facto de ainda não se ter resolvido a “pobreza estrutural” de dois milhões de portugueses e as desigualdades regionais e sociais que a pandemia veio acentuar.
Para explicar a complexidade da mudança operada em 1974, Marcelo escolheu centrar-se nos capitães de Abril, que “não vieram de outras galáxias, nem de outras nações”, nem aparecerem de repente naquela madrugada. “Transportavam consigo já a sua história”, que incluíam várias comissões em África, “tendo todos os dias de decidir entre cumprir ou questionar”. E, isto, “em situações em que a linha que separa o viver do morrer é muito ténue”.
Esses mesmos homens “foram eles os heróis daquela madrugada” e também eles quem acabou por aceitar para “símbolos da mudança” oficiais mais antigos, como Spínola e Costa Gomes, que, lembrou Marcelo, “não tinham sido militares de alcatifa”, mas sim “grandes chefes militares no terreno, responsáveis por anos de combate” nos países que lutavam pela liberdade.
“Foi assim aquele 25 de abril antes de se tornar património nacional em que o único soberano é o povo português”, disse o Presidente que fez questão de também fazer uma referência a Ramalho Eanes, o único ex-Presidente da República presenta na sessão solene, e lembrar que sempre recusou o marechalato.
“Eis porque é tão difícil o juízo sobre uma historia tão presente, salvo naquilo que é de mais óbvio consenso: o consenso de que o Império não compreendeu o tempo”, continuou Marcelo, que se deu a si próprio como exemplo de todas as contradições e evoluções de um Portugal recente: filho de “um ex-governante na ditadura e no Império”, que viveu em Moçambique, país onde o pai foi governador e que ele próprio considera uma segunda pátria; jovem político que “viveu depois como constituinte o arranque do novo tempo e da democracia” e hoje chefe de Estado eleito.
“Nada como o 25 de abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o nosso futuro é tão urgente. E ainda porque, a cada passo, pode surgir a tentação de converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou estratégica “, prosseguiu Marcelo, apelando a uma “lúcida serenidade” quanto ao que pode “agitar o confronto político, mas não é prioritário”.
“É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo o que houve de bom e de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado sem autojustificações, nem autoflagelações globais excessivas”, disse o Presidente, elencando algumas injustiças ainda por reparar relacionadas com o passado recente.
Em primeiro lugar, aos que lutaram na guerra colonial em nome do que então era entendido como “interesse nacional”. Aos milhões que “lá e cá” viveram o outro lado da História combatendo o Império Colonial ou ao lado dos que defendiam esse mesmo império e ficaram “esquecidos, abandonados e condenados por quem nunca lhes perdoou”. E aos muitos dos que “nas várias pátrias” sofreram as consequências da descolonização.