Anabela Lima tem 59 anos e é cuidadora do marido Valdemar, que tem Alzheimer. “Éramos um casal muito unido e ele costumava dizer que, juntos, éramos uma fortaleza. Mas essa fortaleza ruiu quando soubemos o diagnóstico da doença”, desabafa Anabela.
Tudo começou há seis anos, quando a mulher percebeu que Valdemar se isolava muito, deixava acumular papéis e quanto estava junto ao computador, apenas olhava para o jogo de xadrez, sem mover uma peça. “Não era normal nele que antes fazia tantas coisas no computador”.
As suspeitas agravaram-se no dia em que Anabela lhe pediu uma toalha e Valdemar lhe deu uma de cor diferente (lá em casa cada um têm uma cor) uma e outra vez. Primeiro pensou que estava a brincar e questionou-o; depois percebeu que não. Sem lhe dizer mais nada, decidiu ter mais atenção ao que o marido fazia.
Para Anabela, o clique surgiu no dia em que lhe pediu tampas para as caixas de plástico e Valdemar não sabia as formas. Alertou os filhos e foram à médica de família. Seguiram-se exames que, no entanto, nada acusaram, mas, perante os incidentes que se multiplicavam, Anabela decidiu recorreu a uma neurologista. Nessa altura, a vida do casal mudou definitivamente.
Deixar tudo por amor
Anabela Lima era proprietária de um café no Mercado de Porto Salvo e durante três anos continuou a levantar-se às cinco e meia da manhã, a ir para o trabalho e no regresso, ao fim do dia, a fazer jogos, ditados, contas com Valdemar.
“Esquecia-me que existia, só vivia para ele e chegou a uma altura em que já gritava, não tinha paciência”, confessa à Renascença. A ida ao médico, forçada pelos filhos, confirmou uma depressão profunda. A irmã substituiu-a no café mas Anabela, com preocupações crescentes, não melhorava e no ano passado acabou por fechar portas.
“Vim para casa sem nada, neste momento estou com baixa e são os meus filhos que me ajudam com o pagamento das despesas, cada vez maiores.”
Vida de cuidadora sem descanso
O dia começa pelas sete e meia da manhã. Levantar Valdemar, fazer-lhe a higiene, vestir, calçar, tomar o pequeno-almoço. Se tudo correr bem, cerca de duas horas depois Anabela consegue levar o marido para a Casa do Alecrim, a instituição da Alzheimer Portugal no concelho de Cascais.
Durante o dia, Anabela trata das atividades domésticas e dos muitos papéis que tem sempre, vai às compras. “Muitas vezes, fico no meu cantinho a chorar, a pensar nisto tudo, choro, choro … fico mais aliviada.”
Às cinco, vai buscar Valdemar. “Isto falado parece muito fácil mas não é. Outra vez o banho, despe a camisola, despe os calções, tira os sapatos … tudo demora uma eternidade. Para levantar uma perna posso ter que esperar 10 minutos e às vezes, tenho que ser eu”, relata a cuidadora.
A higiene oral é outra dor de cabeça. Ao contrário do que acontece com muitos destes doentes, Valdemar ainda tem os seus dentes. Aceita bem o fio dentário e o escovilhão mas quando chega a altura da escova com pasta, a conversa é outra.
“Serra os dentes e não consigo abrir-lhe a boca. Ainda tentei com os meus dedos mas depois de umas valentes dentadas, desisti. Agora arranjei uma caixinha para lhe pôr no canto da boca”, revela Anabela, ao mesmo tempo que lamenta que nada disto seja ensinado aos cuidadores.
Uns dias melhores, outros piores, mas para o Valdemar há sempre um sorriso
Anabela diz sentir-se cansada, desgastada mas para Valdemar há sempre um sorriso. “Quando ele chega, estou sempre com um sorriso, estou sempre a falar, brincamos e se no banho, por exemplo, ele fala em tubarões eu respondo-lhe com golfinhos, que são mais bonitos mais meiguinhos. Estou sempre a brincar com o Valdemar, fazê-lo rir é o que eu quero, manter o sorriso dele, até ao fim.”
Confessa que há dias em que tem menos paciência, em que só lhe apetece gritar, mas depois pensa que o marido não tem culpa e que é preciso ter calma. Também Valdemar se apercebe desses dias mais difíceis e então, mostra-se triste. “Mas depois, digo qualquer coisa, sorrio, ele sorri também, aquilo passa à frente e já fica satisfeito”, revela a cuidadora.
Para ajudar a ultrapassar os momentos mais difíceis, Anabela decidiu começar a fazer um livro com textos e fotos que mostram os seus 39 anos de casamento com Valdemar mas sobretudo, os últimos anos, em que a doença de Alzheimer passou a estar presente.
Anabela confessa que teve muita dificuldade em aceitar, e a elaboração do livro, que mostra com orgulho, ajudou-a a encontrar alguma tranquilidade: “despejei a raiva toda no papel”.
Outra ajuda foi a participação no Café Memória, iniciativa da Alzheimer Portugal em que doentes e cuidadores se encontram mensalmente e partilham as suas experiências. Anabela revela que foi a primeira ajuda que teve, “fui muito bem recebida e depois vi que havia mais gente como eu. Vim de lá tão aliviada!” Uma participação que se repete, sempre com a companhia do marido.
“Hobbit” liga neto Dinis e avô Valdemar
O casal tem dois filhos e um neto, agora com cinco anos. Em determinada altura foi preciso explicar ao Dinis que o “dói-dói” do avô não se curava, como o “dói-dói” do joelho dele porque era muito grave.
“Foi a primeira explicação que lhe demos”, diz Anabela que também revela que Dinis começou a observar o que o resto da família fazia a Valdemar, a dar-lhe a colher para ele comer ou a avisar que tinha a faca na boca.
“É muito protector e muito carinhoso. Quando o Dinis vai lá a casa vêem sempre o ‘Hobbit’, é o filme deles. Foi muito engraçado porque a primeira vez que isso aconteceu, o Dinis sentou-se ao lado do avô e ficou o tempo todo de mão dada com ele. E acho que isso ficou gravado na memória do Valdemar porque acontece sempre.”
Cuidadores precisam de apoios
Nas redes sociais, Anabela encontrou outros cuidadores de doentes de Alzheimer e outras demências a passar pelos mesmos problemas: sem apoios, muitas vezes a ter que abdicar da sua vida pessoal e profissional para cuidar dos doentes, a pôr em causa a sua subsistência e a não saber o que fazer no dia-a-dia. Confessa que protestou sempre e há-de protestar “até que as coisas sejam feitas como eu acho que têm que ser”.
Envolveu-se na organização do primeiro encontro nacional de Cuidadores de doentes de Alzheimer, que decorreu em Junho na Universidade Católica, e é uma das promotoras da petição que defende a criação do Estatuto do Cuidador de Doentes de Alzheimer e outras Demências.
Diz que o fez a pensar também nos muitos cuidadores mais velhos e que não têm acesso à informação e aos pouquíssimos apoios que ainda assim podem conseguir. Por isso diz que tenta recolher o máximo de assinaturas em papel porque “estas pessoas mais velhas não têm acesso à internet”.
A petição tem cerca de nove mil assinaturas online. Há muito que ultrapassou as quatro mil necessárias para a questão ser discutida no Parlamento, mas todas não são demais, reforça a cuidadora.
O Passeio da Memória de domingo serviu para sensibilizar a população para Doença de Alzheimer, os problemas dos cuidadores e angariar mais algumas assinaturas. Valdemar esteve com Anabela no Passeio de Oeiras. Sempre com um sorriso.