Quando, há dois anos, o investigador especial Robert Mueller foi nomeado para averiguar se houve conspiração entre a campanha eleitoral de Donald Trump e a Rússia, o presidente desabafou para o seu ministro da Justiça de então, Jeff Sessions: “Oh meu Deus, isto é terrível. Isto é a pior coisa que me aconteceu. Isto é o fim da minha presidência. Estou tramado”.
Dois anos depois, Trump pode sorrir. Não foi o fim da sua presidência e pode até ter sido o impulso decisivo para a sua reeleição. A divulgação, esta quinta-feira, do relatório final da investigação de Mueller significa a maior vitória política de Trump desde que foi eleito, apesar das muitas interrogações e perplexidades que suscita.
Mas seja qual for a extensão da controvérsia que o relatório desencadeie não haverá quaisquer consequências práticas daqui para a frente. As conclusões não vão ser alteradas e mesmo que os democratas lancem no Congresso mais investigações a Trump - e a ambiguidade do relatório em certo aspetos abre essa possibilidade - não possuem maioria no Senado para virar o rumo dos acontecimentos.
É certo que prosseguem entretanto investigações do FBI e dos procuradores de Nova Iorque a vários negócios de Trump que podem ser comprometedores para o Presidente, mas mesmo que cheguem a conclusões incriminatórias não terão consequências para o exercício do mandato. Poderão ter quando Trump sair da Casa Branca, não antes.
A ironia de tudo isto é que o relatório Mueller não iliba Trump de ter cometido um crime. Limita-se a dizer que não encontrou provas inequívocas de que ele tenha cometido um crime, mas também não exclui essa hipótese, não o exonera de um ilícito. No resto, é devastador para o comportamento do presidente.
Ao deixar em aberto tal conclusão, o relatório abriu margem de discricionariedade para o Departamento de Justiça interpretar como bem entendesse. E com William Barr à frente do departamento — um homem recém-nomeado por Trump que no ano passado escreveu um artigo a criticar o curso das investigações de Mueller — a interpretação foi necessariamente a mais benigna para o presidente.
Barr, o atual attorney-general, equivalente a ministro da Justiça e procurador-geral, é adepto da tese de que um presidente em exercício não pode ser acusado formalmente de um crime e destituído por isso. Além disso, no artigo referido acusava a investigação de Mueller de ter exorbitado o âmbito para que fora criada.
Aliás, na conferência de imprensa desta quinta-feira, William Barr assumiu as divergências interpretativas com Mueller e na qualidade de líder do Departamento de Justiça tomou em mãos as rédeas do processo. O que, na prática, culmina na absolvição do presidente.
Não houve conluio com Rússia
Duas questões-chave dominam o relatório: o eventual conluio com a Rússia na campanha eleitoral para influenciar o resultado, e a obstrução à justiça. No primeiro, o relatório conclui pela inexistência de conluio. Dá por adquirido que houve uma clara conspiração russa para interferir na campanha - há inclusive cidadãos russos acusados formalmente pela justiça americana - mas conclui que não houve ninguém do lado americano a cooperar com tais ações.
Nem Trump, nem ninguém na sua campanha conspiraram com os russos conscientemente. Houve reuniões com enviados do Kremlin, houve contactos com o embaixador russo em Washington, houve satisfação pelos emails pirateados ao Partido Democrático e cedidos à Wikileaks, houve mesmo disseminação desses emails, mas nada disto configura “conspiração” ou “conluio” com uma potência estrangeira para interferir no processo eleitoral americano. Mesmo a disseminação dos emails só seria considerada crime se tivesse havido cooperação no ato de os piratear, não apenas divulgar.
A outra questão é a da obstrução à justiça. O relatório dá como provadas várias ações de Donald Trump para tentar parar as investigações, mas inibe-se de concluir que foram tentativas de obstruir a justiça. Uma delas é o já citado comentário a Jeff Sessions, quando o então ministro da Justiça lhe comunicou que tinha nomeado Mueller para investigar a questão da interferência da Rússia na campanha.
Ao fazê-lo, Sessions excluiu-se também de tutelar o processo porque omitira ao Congresso um contacto que havia tido com o embaixador russo em Washington. Desde então, Trump tentou várias vezes convencê-lo a assumir a tutela de Mueller e passou a criticá-lo publicamente por não o fazer e não proteger o presidente. A certa altura, pediu mesmo ao seu ex-diretor de campanha para convencer Jeff Sessions a vir a público dizer que a investigação de Mueller era “muito injusta”. O pedido foi recusado.
A segunda tentativa foi quando tentou convencer o então diretor do FBI, James Comey, a deixar cair as investigações ao então conselheiro nacional de segurança, Michael Flynn. Mais tarde, ele próprio despediu Comey, confessando numa entrevista que o tinha feito por causa da investigação à questão da Rússia.
Pouco depois, telefonou a um dos advogados da Casa Branca, Donald McGahn, ordenando-lhe que despedisse Mueller. O advogado recusou e resignou às funções na administração. McGahn foi uma das principais fontes das investigações de Mueller.
Obstrução à justiça não excluída
Todas estas ações de Trump não foram consideradas suficientes para configurar o crime de obstrução à justiça. O relatório diz mesmo a dado passo que as várias tentativas de Trump para obstruir a justiça só não se concretizaram graças à determinação dos seus colaboradores. No entanto, o despedimento de Comey concretizou-se e com estrondo na altura.
Mas é neste ponto que Robert Mueller faz considerações importantes. “Se tivéssemos confiança, após uma profunda investigação aos factos, que o presidente claramente NÃO (sublinhado meu) cometeu obstrução à justiça, declará-lo-íamos”. E prossegue: “Baseados nos factos e nos padrões legais aplicáveis, contudo, somos incapazes de fazer tal juízo. As provas que obtivemos sobre as ações do presidente e as suas intenções colocam questões difíceis que nos impedem de concluir com determinação que NÃO (sublinhado meu) houve conduta criminal”.
Ou seja, se não tivesse havido conduta criminal, o relatório di-lo-ia preto no branco. Em vez disso, limita-se a dizer que tal hipótese não está excluída, limita-se a não o absolver de tal prática. E aqui entra um aspeto importante desta investigação. É que para provar que as citadas ações de Trump foram criminosas era importante conhecer as suas intenções quando as levou a cabo.
Ora, essa avaliação só poderia ser feita numa entrevista ao presidente. Algo que Mueller tentou fazer, mas que não levou até às últimas consequências. O investigador requereu uma entrevista a Trump, insistiu com os advogados da Casa Branca, disponibilizou-lhes muitas das perguntas que queria fazer, mas a recusa prevaleceu. A dado passo do processo, Mueller fez saber que, caso Trump se recusasse, ele tinha poderes para intimá-lo a depor ou até levá-lo a um grande júri em que o depoimento seria público. Os advogados da Casa Branca entraram em pânico porque sabiam que, numa entrevista com Mueller, as inconsistências de Trump, o seu pensamento errático e a tendência natural para mentir, o enterrariam facilmente.
Todos tinham consciência disso, exceto o próprio Trump, que chegou a dizer publicamente que estava desejoso de falar com Mueller. A verdade, porém, é que as coisas se foram arrastando, a recusa manteve-se e Mueller acabou por não lançar nenhuma intimação e desistiu da entrevista pessoal. A justificação para a desistência foi que o processo seria demasiado moroso e atrasaria toda a investigação. Mueller estava há muito a ser pressionado para concluir o seu trabalho.
Este é porventura o aspeto mais vulnerável do seu relatório. Impossibilitado de avaliar as intenções do presidente quando levou a cabo as tentativas de obstrução à justiça, o investigador especial acabou por tirar conclusões algo ambíguas. Não podemos afirmar que cometeu crimes, mas também não podemos afirmar que não cometeu. Para uma investigação que durou dois anos, ouviu centenas de pessoas, custou 35 milhões de dólares e mandou para o banco dos réus seis colaboradores de Trump — três dos quais já condenados a prisão efetiva — não parece um resultado muito lisonjeiro.
Mas as coisas são o que são e agora chegou a vez de Donald Trump sorrir. O ano e meio que lhe falta para acabar o mandato será seguramente menos tenso e sem o fantasma do "impeachment" a pairar. Os democratas vão precisar de muitas mais munições para o derrotar em 2020.