“Pessoas desassossegadas não têm vidas sossegadas”, diz Isabel Jonet nesta entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, onde fala dos vários projetos a que se dedica em regime exclusivo de voluntariado há 25 anos: é presidente do Banco Alimentar Contra a Fome (BA) de Lisboa e da Federação que reúne os 21 bancos alimentares existentes no país, foi fundadora da Bolsa de Voluntariado, da ENTRAJUDA, do Banco dos Bens Doados e, mais recentemente, do projeto "Tempo Extra", que está a mobilizar cada vez mais voluntários na idade da reforma.
Licenciada em Economia, Jonet olha com preocupação para os números do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), que mostram que o risco de pobreza cresceu entre quem tem emprego e entre os idosos. E diz que é preciso olhar com atenção para o endividamento das famílias, que está de novo a crescer.
Sob o mote "Adira a esta rede social", a nova campanha de recolha de alimentos do BA vai decorrer no próximo fim de semana em cerca de dois mil supermercados do país, mas até dia 8 de dezembro é possível comprar vales de produtos ou contribuir através da internet. Os produtos angariados vão chegar a quase 400 mil pessoas com carências comprovadas, através de 2.400 instituições de solidariedade.
O Banco Alimentar Contra a Fome realiza este fim de semana mais uma campanha nacional de recolha de alimentos. É importante os portugueses continuarem a colaborar e a contribuir para esta iniciativa?
O Banco Alimentar são hoje 21 bancos alimentares disseminados pelo território nacional, que não fariam sentido se os portugueses não os reconhecessem como a entidade de referência e de confiança para canalizar as suas doações de alimentos, sempre numa lógica de partilha.
Os BA não fazem peditórios, fazem campanhas de recolha de alimentos à porta dos supermercados, convidando quem vai às compras para sua casa a partilhar algo com quem não tem o mesmo nas suas casas, portanto há aqui um apelo, um convite à partilha.
"É uma grande cadeia logística. Seria impossível os bancos alimentares estarem a apoiar diretamente a alimentação de quase 400 mil pessoas. Aquilo que fazemos são protocolos de parceria com instituições que recebem os produtos, algumas diariamente"
Aliás, a campanha deste ano tem como mote "Adira a esta rede social real", até em contraponto às redes sociais em que partilhamos vídeos, fotografias de refeições, por vezes até coisas sem sentido. Este apelo é para que as pessoas adiram a uma rede social que partilha coisas que são absolutamente necessárias, que têm sentido.
Há a expectativa de, através desta abordagem e deste mote, conseguirem chegar a um público mais diferenciado?
Os bancos alimentares dirigem-se a toda a gente, essa é a sua força e o seu aspeto diferenciador. Os bancos alimentares não dependem de nada nem de ninguém, não têm qualquer ligação política, religiosa ou até territorial. Dirigem-se a todos os portugueses, a toda a sociedade civil, sendo um produto da própria sociedade civil.
Todas as pessoas que quiseram constituir bancos alimentares – e como disse já há 21 no país – dirigiram-se ao BA de Lisboa, que foi o primeiro criado em Portugal, e pediram: ‘Como é que eu posso abrir um banco alimentar?'. E aquilo que fazemos é ensinar a fazer um banco alimentar.
Os bancos alimentares têm de ser oriundos da sociedade civil, do local onde se querem constituir, e têm de ser alimentados por essa sociedade local, seja com voluntariado – e todos os corpos sociais e todos os dirigentes dos BA são obrigatoriamente voluntários -, seja com produtos, serviços ou donativos em dinheiro. Aquilo que fazemos é em cada local ajudar a abrir um banco alimentar que serve a região. Por exemplo, nesta campanha, todos os produtos que forem recolhidos na região de Coimbra serão distribuídos na região de Coimbra, tudo o que for recolhido na região do Algarve será distribuído na região do Algarve. Há uma grande proximidade entre quem dá e quem recebe e os bancos alimentares têm um modelo de funcionamento que assenta em parcerias, não doam nada a ninguém diretamente.
Quem distribui os produtos são as instituições que os vão buscar aos bancos alimentares?
Precisamente. É uma grande cadeia logística. Seria impossível os bancos alimentares estarem a apoiar diretamente a alimentação de quase 400 mil pessoas. Aquilo que fazemos são protocolos de parceria com instituições – e são 2.400 instituições que recebem os produtos, algumas diariamente.
Todos os dias há entidades que vão a um armazém do BA receber produtos, são parceiras no terreno na distribuição dos alimentos. Levam-nos sob a forma de alimentação confecionada, que é servida nos lares, nas creches, nos centros de dia, ou através de sacos de alimentos que são entregues às famílias que, uma vez por semana, de 15 em 15 dias, ou até diariamente os vão buscar. Porque, para além dos produtos que são recolhidos nestas campanhas, acrescem os excedentes de produção e a missão do BA é a luta contra o desperdício de alimentos.
Há 28 anos que nos dirigimos às empresas dizendo 'Não deite fora o pão que lhe sobra' ou 'Não deite fora a fruta que tem a mais' ou 'Não desperdice a charcutaria fresca que não conseguiu comercializar'.
E tem havido mais sensibilidade ao longo do tempo para essa necessidade de não desperdiçar?
Muita, muita. O Banco Alimentar foi pioneiro nesta ideia da luta contra o desperdício alimentar, essa é a missão do BA, está consagrada na carta, e a nível europeu é assim. Mas há aqui uma componente de rigor na distribuição, e no sentido da distribuição com amor que é feita pelos bancos alimentares através das instituições que levam os alimentos à mesa de quem precisa, e que nas soluções mais tecnológicas, apenas de combate ao desperdício, por vezes se perde.
O BA tem em si esta necessidade de recolher alimentos evitando a sua destruição e o seu desperdício, porque há quem deles precise. Há um sentido de justiça na distribuição dos alimentos, porque não é justo uma sociedade excessivamente consumista produzir para destruir. Então, a proposta do BA às empresas – e tem-se feito caminho até em termos de fiscalidade – é: ‘Não destrua, dê, o BA vai levar o seu produto à mesa de quem precisa e a sua empresa ainda pode ter benefícios fiscais’.
Falou há pouco na distribuição de bens alimentares através de 2.400 instituições. Essas instituições não têm protocolos com o Estado para garantir a alimentação aos seus beneficiários e utentes? Não há aqui duplicação de apoios?
A grande maioria destas instituições tem efetivamente acordos com o Estado, mas por exemplo as Conferências de São Vicente de Paulo não têm este tipo de acordos, e muitos outros grupos informais também não. Mas mesmo as instituições que os têm não recebem as verbas suficientes para fazer face às despesas gerais de financiamento.
Em Portugal, o Estado delegou nas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) a assistência e o apoio aos mais necessidades e, em meu entender, delegou bem, porque o Estado não pode ter a ambição de fazer aquilo que as instituições que estão no terreno fazem com muito mais proximidade, com muito mais amor, com muito mais eficácia e com muito menor custo, mas sobretudo com muito maior transparência.
O Estado faz acordos de parceria com lares, centros de dia, residências de jovens e crianças, creches, etc. Por cada utente é atribuído um valor, mas que não chega nem para 60 % das despesas. Então as instituições, para além das mensalidades dos utentes, têm de solicitar outro tipo de apoios, nomeadamente este apoio aos bancos alimentares.
Tem crescido o número de instituições que recorrem ao Banco Alimentar?
É estável, porque já abrangemos praticamente o universo das instituições.
Portanto, aqui não há diferença, por exemplo, em relação aos anos da crise?
Não, não há. O número de instituições não tem variado. No número de pedidos, ou seja, no número de famílias que são abrangidas pelas instituições é que se verificou um decréscimo, sobretudo devido ao decréscimo do desemprego.
Há menos desemprego e a pobreza baixou para 17,2%, em 2018. Mas, segundo os dados mais recentes do INE, conhecidos esta semana, ainda há 2 milhões e 200 mil portugueses em risco de exclusão social, que vivem com menos de 501 € por mês, ou seja, o risco de pobreza cresceu entre a população que até está empregada. Sendo economista de formação, que leitura faz destes números?
São muito preocupantes. Mais de um quinto da população portuguesa – dois milhões e 200 mil pessoas – vive com menos de 501 euros por mês, há um milhão de pessoas que não tem 250 euros por mês para viver e há, sobretudo, uma situação muito preocupante que são as chamadas bolsas de pobreza.
Nós temos uma população muito envelhecida, muitas mulheres que não descontavam, não faziam parte dos sistemas contributivos, e têm apenas as reformas da Segurança Social, que são muito baixas, e à medida que vão ficando mais velhas a parte que é consagrada à saúde e aos medicamentos aumenta. Portanto, temos hoje um elevado número de pessoas que dependem da assistência, dos subsídios para viver, mas dependem também das ajudas que lhes chegam.
Quando essas pessoas são, como estas estatísticas revelam, trabalhadores pobres, pessoas que já têm um emprego, que trabalham muito mais do que oito horas por dia e ainda perdem bastante tempo nos transportes, porque moram em zonas periféricas das cidades – este fenómeno é abrangente a todo o Portugal -, e que chegam ao fim do mês e não têm dinheiro suficiente para satisfazer as necessidades do seu agregado familiar, como é que estas pessoas poderão viver se não tiverem apoio de instituições, seja por via de mensalidades reduzidas nas creches, seja por via de apoio alimentar?
Estes dados são muito preocupantes, sobretudo porque mostram que, apesar da melhoria da situação económica, há uma pobreza que é estrutural em Portugal que não estamos a conseguir combater. E é urgente que se encarem medidas que permitam fazer com que pelo menos as próximas gerações possam ter a esperança de ver alterada a sua situação real de vida. Isto só se faz por via da economia, gerando riqueza, e só se faz tendo mais qualificação no trabalho.
Até que ponto – e esta é uma crítica que vemos muitas vezes ser feita – este regime de apoios leva ao comodismo de quem fica subsídio-dependente?
Eu não posso estar mais de acordo em relação a esse tipo de apreciações, até porque se nós só damos, não induzimos qualquer tipo de responsabilidade nem qualquer tipo de mudança.
Todos nós gostamos que as coisas nos cheguem às mãos sem esforço e no caso das pessoas mais carenciadas há, por vezes, esta tentação. Aquilo que me parece – e é por isso que o Banco Alimentar não entrega diretamente nada às pessoas – é que há aqui um canal de excelência em Portugal, que é o canal das instituições de solidariedade social, que tem um trabalho a fazer com cada uma das famílias para que se autonomize e se responsabilize.
Mas, volto a dizer, em Portugal há um milhão de idosos com menos de 250 euros por mês, e estes idosos não vão poder nunca autonomizar-se. Pelo contrário, cada ano que passa vão precisar de mais ajuda, portanto soluções como o Complemento Solidário para Idosos são muito bem-vindas. Haverá outras medidas semelhantes que serão bem-vindas, mas muitas destas famílias precisam de ajuda, as instituições, ou outras fórmulas que sejam criadas, farão com que estas famílias se responsabilizem pela sua vida, mas não se tenha ilusões – isto não se consegue fazer do dia para a noite.
As instituições têm essas situações identificadas. Isso garante ao Banco Alimentar que os produtos que recolhe chegam, de facto, a quem mais precisa?
As instituições são os distribuidores dos alimentos que as pessoas doam às famílias. Aquilo que nós fazemos é acompanhar as instituições, por via até de outra instituição que criámos, que se chama ‘ENTRAJUDA’, e o que fazemos é garantir que estas instituições levam os produtos, mas também prestam outro tipo de auxílio, mais estruturante, às famílias.
O Banco Alimentar confia nas instituições para essa transformação das famílias e das pessoas?
O Banco Alimentar confia e ajuda as instituições a criar programas que possam promover estas autonomias em cada uma das famílias, equipando-as até com outro tipo de bens, que não sejam só alimentares. Que possam, por exemplo, gerar mudança na habitação.
A habitação hoje nas grandes cidades é um problema. Temos muitos trabalhadores pobres que, de repente, têm uma fatia muito grande do seu rendimento disponível para a renda de casa, que aumentou muito. Há uma ajuda que deve ser integrada se queremos que estas pessoas possam dar a volta à sua vida.
Prevê que os pedidos de ajuda possam vir a crescer face a estas necessidades e dificuldades?
Hoje assiste-se, de novo, a um fenómeno de sobreendividamento das famílias.
Na altura da crise houve dois grandes fatores que afetaram muito as famílias portuguesas: o desemprego e o sobreendividamento. O que vejo hoje é que, se temos uma taxa de desemprego muito baixa, voltámos a ter níveis de sobreendividamento muito consideráveis. E há esta preocupação de que as famílias não pensem que a situação económica é melhor – com certeza, é visível – , mas que está tudo tão bem para sempre, que nunca nada mudará.
Seria bom que fosse assim, mas o que tendencialmente observamos é que continua a haver um grande número de pessoas – e estes dados estatísticos confirmam-no – que não são completamente autónomas para satisfazer as suas necessidades diárias.
"Todos os dias propomos às pessoas, e até às empresas que estão a negociar com os seus colaboradores contratos de reforma ou pré-reforma, que proponham o voluntariado como intervenção de cidadania ativa"
"O que está na base destes projetos é a luta contra o desperdício: de alimentos, de bens e de tempo, a luta contra o desperdício do amor. O que procuramos é que nada se perca, porque não há direito de fazermos perder, sobretudo este amor que falta hoje muito na sociedade em que vivemos"
A Isabel Jonet, para além de dirigir o BA de Lisboa e também a Federação dos BA em Portugal, entre 2012 e 2017 esteve à frente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares. Portugal esteve e está na linha da frente? Está a exportar a ideia?
Sim. Nós até temos uma fórmula engraçada e dizemos que o Banco Alimentar ajuda a alimentar ideias. Para além da 'ENTRAJUDA', que é uma emanação do Banco Alimentar, ajudámos a abrir Bancos Alimentares em diferentes países, na Grécia, Angola e Cabo Verde, também na África do Sul, o que foi muito gratificante.
Hoje é tudo mais fácil com as novas tecnologias, não é preciso ir, podemos falar pelo computador, quase podemos estar nos locais e podemos partilhar muita informação e documentação.
Mas eu diria que, para mim – até porque sou fundadora, com uma equipa extraordinária de voluntários qualificados, que têm feito um caminho incrível neste setor social – talvez a ‘ENTRAJUDA’ seja o projeto mais estruturante que pôde ser criado. Porque o que propõe é uma mudança na gestão e organização das instituições.
Tenho muito contacto com freiras e padres, que são os presidentes dos centros sociais e paroquiais – em Portugal temos uma rede social muito ligada à Igreja católica – e penso para mim: 'Porque é que as freiras que são extraordinárias hão-de estar a fazer documentos para a contabilidade ou a prestar contas para a Segurança Social, quando podiam estar a consagrar tempo e amor a pessoas com deficiência, acamadas ou a crianças que precisam de colo, e estão a gastar as suas pestanas a fazer contabilidade, que não sabem nem têm de saber, quando há voluntários qualificados que sabem contabilidade e as querem ajudar?'
Há aqui uma possibilidade de encontro. Eu acredito em redes sociais que são verdadeiras e acredito que nós todos fazemos parte uns dos outros; quando nos conhecemos e conseguimos encontrar-nos, geramos mais valor. Às vezes andamos desencontrados. Cabe a cada um de nós promover estes encontros.
Falámos do Banco Alimentar, da ‘ENTRAJUDA’, do ‘Tempo Extra’, da Bolsa do Voluntariado. Também gostaria de ter falado do Banco de Bens Doados ou do Banco de Equipamentos. São vários projetos a que tem estado ligada ao longo dos anos. Onde é que se inspira e o que é que a motiva?
Eu digo sempre que pessoas desassossegadas não têm vidas sossegadas e, quando caminhamos neste setor, com tantas necessidades e carências, mas onde vemos que às vezes basta estender uma mão para receber um sorriso, vamos encadeando estas coisas todas umas nas outras, porque fazem sentido. E todos estes projetos fazem sentido de uma forma integrada, sempre unidos por uma ideia que é a luta contra o desperdício.
O que está na base destes projetos é a luta contra o desperdício: de alimentos, de bens e de tempo, a luta contra o desperdício de amor. O que procuramos é que nada se perca, porque não há direito de fazermos perder, sobretudo este amor que falta hoje muito na sociedade em que vivemos, onde tudo pode ser otimizado, fazendo com que as pessoas tenham mais tempo para os outros mas também mais tempo para si próprias.
Nós vivemos muito mais tempo e podemos viver melhor se aproveitarmos melhor este tempo. Acho que tenho sido abençoada com esta certeza de que encontro sempre à minha volta pessoas espetaculares, todas motivadas também por esta vontade de contribuir e participar.
O Dia Mundial do Voluntariado assinala-se na próxima semana, no dia 5 de dezembro. Continua a trabalhar no Banco Alimentar como voluntária?
Eu sou voluntária. Nunca ganhei nenhum dinheiro nem qualquer contrapartida pelo tempo e trabalho que dedico, seja no Banco Alimentar seja na ‘ENTRAJUDA’. Foi uma opção de vida que fiz, e que fiz conscientemente com a minha família, desde 1994.