Advogados de arguidos do processo Hell´s Angels apontaram esta terça-feira, no início do julgamento, a eventual violação do "princípio do juiz natural" com a recusa de uma juíza auxiliar em integrar o coletivo e sua substituição por uma outra magistrada.
Os advogados de defesa chegaram a propor à juíza presidente do coletivo, Sara Pina Cabral, o adiamento do início da audiência de julgamento por forma a permitir apurar as razões concretas da recusa daquela juíza auxiliar em fazer parte do coletivo, bem como da legalidade da sua substituição pela juíza Anabela Morais.
Alguns dos advogados alegaram ainda que a substituição da juíza auxiliar Silvia Costa pela magistrada Anabela Morais só podia ter sido tomada em deliberação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) - órgão de gestão e disciplina dos juízes - e não através de um regulamento de 2020 elaborado pela juíza presidente do Tribunal de Loures, embora com autorização expressa do vice-presidente do CSM.
"Não vamos abdicar do princípio do juiz natural", disse em audiência o advogado Miguel Fonseca, adotando uma posição também expressa por Melo Alves, advogado de defesa de seis dos 88 arguidos acusados no processo Hell´s Angels.
A juíza presidente do coletivo de julgamento indeferiu o pedido de adiamento, mas, de imediato, outros advogados de defesa tentaram ainda adiar o início dos trabalhos, desta vez sob a alegação de que a última juíza auxiliar nomeada para o coletivo (Anabela Morais) não tinha tido tempo para ler a acusação (de 500 páginas), facto que, em sua opinião, viola normas do Código de Processo Penal (CPP) e da Constituição.
Também neste campo, a juíza presidente do coletivo de julgamento optou por rejeitar a pretensão dos advogados de defesa, justificando que a colega Anabela Morais já tinha tomado contacto com o processo, decidindo assim avançar com o julgamento propriamente dito, iniciando a identificação da maioria dos 88 arguidos, ficando as restantes identificações agendadas para a sessão de quarta-feira de manhã.
A maioria dos arguidos já identificados pelo coletivo de juízes anunciou que não pretende prestar declarações em audiência, havendo indicação de um dos advogados que apenas um deles deseja esclarecer alguns pormenores relacionados com uma arma.
O julgamento devia ter tido o seu começo no período da manhã, mas teve que ser adiado para o período da tarde devido a uma sucessão de imprevistos que foram descritos pela juíza presidente Sara Pina Cabral.
Explicou na altura que uma primeira juíza auxiliar estava de baixa e que a magistrada que a substituiu também não pode integrar o coletivo porque vai ser operada em outubro e terá de permanecer de baixa nos 30 dias seguintes à cirurgia. Por outro lado, a terceira juíza auxiliar indicada na substituição recusou integrar o coletivo, por motivos ainda não divulgados mas comunicados ao CSM, tendo sido então designada uma quarta juíza auxiliar, Anabela Morais.
Foi precisamente a decisão de recusa de uma das juízas auxiliares em integrar o coletivo que levou advogados como Miguel Fonseca e Melo Alves (este último mandatário de seis arguidos) a exigir o acesso ao despacho do CSM para perceber os fundamentos dessa recusa, que classificam de "estranha".
À saída do tribunal, Melo Alves disse que a defesa tem o direito a sindicar e a conhecer os motivos que ditaram a recusa da juíza auxiliar em integrar o coletivo, podendo estar em causa o princípio do juiz natural, que assegura o sorteio e a aleatoriedade da escolha dos magistrados que julgam um processo.
"O princípio do juiz natural foi à primeira vista violado", declarou Melo Alves aos jornalistas.
Entretanto, devido ao elevado número de arguidos e advogados, o julgamento do processo Hell´s Angels decorreu no Espaço Multiusos, em Camarate, conhecido pela "Fábrica", mediante fortes medidas de segurança asseguradas por várias unidades da PSP.
Por seu turno, os jornalistas tiveram que assistir ao julgamento numa sala à parte, através de videoconferência.
Os 88 arguidos do processo Hell’s Angels estão acusados de crimes graves, incluindo associação criminosa, depois de o Tribunal Central de Instrução Criminal ter decidido em outubro de 2020 pronunciar todos os arguidos "nos exatos termos da acusação", sendo que agravou a medida de coação imposta a muitos dos arguidos, colocando vários deles em prisão domiciliária.
Para o juiz de instrução Carlos Alexandre, face aos indícios analisados, "este conjunto de elementos assim agrupados não é um simples clube recreativo 'motard', mas um conjunto de pessoas que se organizam (...) em moldes paramilitares ou semelhantes ao modo de atuação de uma milícia".
Nas alegações do debate instrutório, o Ministério Público pediu a ida a julgamento de todos os arguidos, sustentando que todos praticaram os crimes que constam na acusação, nomeadamente extorsão e posse de arma proibida, designadamente soqueiras, mocas e bastões extensíveis.
O MP deu como provado, entre outros factos, o ataque perpetrado pelos arguidos e membros do grupo Hell’s Angels no restaurante Mesa do Prior, no Prior Velho, bem como a perseguição movida por estes a Mário Machado, líder do movimento de extrema-direita Nova Ordem Social e que pertencia a um grupo 'motard' rival.
A acusação do MP considerou que aqueles membros do grupo 'motard' elaboraram um plano para aniquilar um grupo rival, em março de 2018, com recurso à força física e a várias armas para lhes causar graves ferimentos, “se necessário até a morte”.
Os arguidos estão acusados associação criminosa, tentativa de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, ofensa à integridade física, extorsão, roubo, tráfico de droga e posse de armas e munições, entre outros ilícitos.