Nós e os outros. A sociedade polarizada
25-09-2023 - 06:00
 • Luís Caeiro

A polarização é uma séria ameaça às bases da democracia que assentam no diálogo, no respeito pelas instituições, na tolerância, na abertura à diferença e no reconhecimento da legitimidade dos outros.

A polarização é um fenómeno comum da vida social, que se refere ao afastamento das opiniões no sentido dos extremos, aumentando os níveis de confronto entre posições opostas.

Dados recentes mostram que vivemos num mundo cada vez mais polarizado. O Fórum Económico Mundial acabou de publicar o Relatório de Riscos Globais 2023, com uma análise dos principais fatores de risco para a sociedade global, no curto prazo e num horizonte de 10 anos.

Uma das revelações mais surpreendentes é a importância atribuída à erosão da coesão social e à polarização da sociedade, como ameaça global. De 32 ameaças identificadas, a polarização aparece, entre as ameaças de curto prazo, logo a seguir à crise do custo de vida, às questões climáticas e às confrontações geoeconómicas.

Nas ameaças a 10 anos, a polarização social é a terceira mais referida, a seguir às ameaças ambientais e às migrações involuntárias em larga escala. A polarização é percebida como tendendo a agravar-se, tanto a curto como a longo prazo.

O EdelmanTrust Barometer 2023 também conclui que os níveis de polarização estão a subir. Há seis países fortemente polarizados em que os inquiridos reconhecem que a população está muito dividida e sentem que as divisões não serão ultrapassadas: Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Africa do Sul, Espanha e Suécia. Outro grupo de países foi identificado como estando em risco de forte polarização, entre eles o Brasil, a França, o Reino Unido, a Holanda, a Itália e a Alemanha.

Na perceção dos inquiridos, os principais fatores que explicam a polarização social são a falta de confiança nos governos, não haver uma identidade partilhada, as injustiças sociais, o pessimismo económico e a falta de confiança nos media.

Em mais de metade dos países analisados, as pessoas dizem que o seu país está hoje mais dividido do que no passado. Os que mais contribuem para a divisão da sociedade são os ricos e poderosos, os líderes governamentais e os jornalistas.

Caso a polarização social não seja resolvida, as pessoas receiam o aumento da discriminação e do preconceito, a estagnação económica, violência nas ruas e a incapacidade de se resolver os desafios sociais emergentes.

A polarização também afeta as relações de proximidade: só 30% dos inquiridos estariam dispostos a ajudar uma pessoa que discordasse fortemente dos seus pontos de vista e apenas 20% estariam dispostos a trabalhar com ela.

Uma pesquisa publicada em junho último, pelo IPSOS/King’s College de Londres, também confirma os muitos temas que fraturam as sociedades. À pergunta “que tensões dividem fortemente o seu país?”, cerca de 70% das respostas mencionam a oposição entre ricos e pobres, as pessoas que apoiam os vários partidos políticos, as diferentes classes sociais, as tensões entre emigrantes e pessoas nascidas no país, e a oposição entre os que têm ideias progressistas e os que partilham valores tradicionais.

O aumento da polarização está associado à crise da democracia, e à emergência de autocracias e anocracias, em vários países. Segundo o Democracy Report 2023, do V-Dem Institute, entre 2012 e 2022 a percentagem da população mundial que vive em países autocráticos passou de 46% para 72%. Pela primeira vez, em mais de duas décadas, as autocracias são dominantes. Atualmente, só 13% da população mundial vive em democracias liberais enquanto 28% vive em regimes em que não há eleições multipartidárias, não há liberdade de expressão nem de associação e as eleições são manipuladas. A democratização da sociedade só está a acontecer em 14 países, onde vivem 2% da população mundial. Este valor é o mais baixo dos últimos 50 anos.

O agravamento da polarização social deve-se ao alinhamento de numerosos fatores. A globalização tirou muitas pessoas da pobreza, mas criou mais desigualdades. As diferenças de riqueza, de poder e de oportunidades, são uma fonte de ressentimento e alimentam a radicalização de grupos contra a marginalização e a injustiça. Mas há também o medo e a incerteza causados pelas crises económicas, pelas mudanças tecnológicas, sociais e culturais, que levam a procurar apoio em grupos que partilham as mesmas ideias, e que conferem segurança e identidade. Estes grupos fechados afirmam-se radicalizando as suas posições.

A polarização ainda é agravada pelo alargamento do debate político que passou das áreas da economia e da gestão da sociedade, para temas relacionados com as atitudes culturais, os comportamentos e os costumes, direitos civis e questões morais, gerando um vasto conjunto de questões fraturantes. A isto junta-se a retórica extremista de líderes que agravam a polarização ao acentuar o medo e a desconfiança em relação aos opositores. Dicotomizam a realidade social com base em estigmatizações e preconceitos, erguendo barreiras ao diálogo.

A internet e as redes sociais têm tido um papel preponderante na polarização social, encorajando a homofilia, a tendência para interagir com pessoas que pensam igual ou partilham a mesma agenda, criando grupos unidos pelas mesmas crenças e discurso argumentativo. Estes grupos fecham-se em “bolhas epistémicas”, recusam visões diferentes e radicalizam as suas posições.

A polarização da sociedade dificulta a aceitação da verdade factual e mina a confiança nas instituições. Está a destruir o centro político e a dificultar a cooperação entre as diferentes forças para se realizar reformas estruturais, centrando-as nos ganhos políticos de curto prazo.

A polarização é uma séria ameaça às bases da democracia que assentam no diálogo, no respeito pelas instituições, na tolerância, na abertura à diferença e no reconhecimento da legitimidade dos outros. Muitos pensam que a resposta à crescente polarização da sociedade é uma responsabilidade das forças políticas, mas, na verdade, é sobretudo um desafio a cada um de nós.


Luís Caeiro, professor na Católica Lisbon School of Business & Economics

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics