A presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, alerta para o risco de inconsequência das medidas do chamado "pacote" da Habitação.
“Temo que não tenha consequências”, diz a responsável em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.
Rita Valadas critica o facto de o Governo avançar com medidas numa altura em que, por exemplo, não se concretizou o projeto relacionado “com as rendas acessíveis”.
“Se há projetos para se investir na habitação condigna, porque é que agora está-se a ir a outra coisa?”, questiona. "Ainda por cima”, prossegue, aquilo que é proposto promove a polémica e “levanta imensas questões ao nível da confusão dos direitos básicos constitucionais”.
A presidente da Cáritas afirma que “a habitação é o principal escolho na resolução de problemas sociais” e adverte para a dificuldade em acolher os emigrantes: “Se não conseguimos resolver os problemas dos nacionais, como é que vamos ter espaço para resolver os problemas de quem chega?”
Noutro plano, Rita Valadas manifesta preocupação com a utilização de verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), lembrando que se está perante um empréstimo, correndo “o risco de ficarmos empenhados sem proveito”.
A presidente da Cáritas Portuguesa tem “pudor em dizer que vai aumentar a fome”, por causa da inflação de preços, mas admite uma diminuição da qualidade alimentar com reflexos ao nível da saúde.
Rita Valadas admite que há um gradual aumento de pedidos de ajuda, sobretudo relacionados com o pagamento de rendas e de faturas de água e eletricidade, sublinhando que há alguma relutância das pessoas em receber alimentos porque “o dia em que as pessoas pedem para comer é o pior dia da sua vida”.
No início da Semana Cáritas, que prolonga até 12 de março, Rita Valadas considera “natural” pensar-se que haverá "dificuldades” no habitual peditório nacional por força da crise, mas não deixa de apelar à ajuda de todos: “O meu apelo é que as pessoas não pensem que só podem ajudar se tiverem uma determinada disponibilidade."
De acordo com os números mais recentes, a Cáritas aponta para o apoio anual a cerca de 120 mil pessoas. Admite a existência de um aumento de ajudas?
Este número - 120 mil - é o nosso número de referência das pessoas que estão em situação de pobreza resistente, aquela pobreza para a qual, infelizmente, ainda não conseguimos encontrar uma solução para a quebrar. Às várias crises que se têm sucedido nos últimos anos têm-se juntado muitas outras pessoas, mas nós resistimos muito a juntá-las ao número das pobrezas, porque a estatística está sempre atrasada muitos anos e eu nem sequer acredito muito na estatística. Mas a verdade é que temos esperança de que estas pessoas não venham a engrossar esse número.
São situações pontuais...
Exato. São situações agravadas por uma crise e esperamos que possam utilizar todos os seus recursos pessoais para sair dela. Com essas pessoas é nessa perspetiva que nós tentamos investir. Tentar investir na promoção de recursos que vão da criatividade até às próprias competências das pessoas que ainda não estão em uso.
Claro que, com o aumento de custos e o aumento taxas de juro, a coisa não é muito fácil, não é?
A nossa pergunta decorre de facto de percebermos que as consequências da guerra, da inflação e da subida das taxas de juro, como referiu. Tudo isso fez aumentar o conjunto de pessoas em situação de pobreza. A dificuldade com o pagamento das rendas das faturas da luz da água são das mais citadas, são das mais procuradas para uma solução?
Sim. Neste momento, temos pedidos de todo o tipo. Diria que o dia em que as pessoas pedem para comer é o pior dia da sua vida, porque, naturalmente, tenta-se resolver com as outras despesas aquilo que não se consegue resolver com a alimentação.
E nós temos pedidos de todos os níveis. Temos pedidos quando as pessoas têm medo de perder a casa, quando temem que lhes cortem a luz, que lhes cortem a água...
Todas essas situações são sucessivas. Hoje, podemos quase encontrar um padrão, que é o da primeira situação, do primeiro tempo de crise em que as pessoas vão procurar tudo. Por exemplo, nas compras, vão às marcas brancas em vez de ir às outras. Na sua situação pessoal, procuram ter menos consumos de água, luz... Na situação da renda, tudo o que estava amealhado, portanto, todas as gorduras financeiras que possam ter, são esgotadas e quando essa situação, quando se começa a comprometer a situação da alimentação e do sustento da família - e muitas vezes essas situações só nos chegam nessa altura -, é realmente a mais dramática das situações.
Os pedidos que chegam vêm de todas estas modulações e afetam muitas famílias.
Falou da questão da alimentação e é um dado da última quarta-feira a informação de que os portugueses fizeram o maior corte nas despesas de alimentação de que há registo. Vai aumentar a fome?
Não sei se vai aumentar a fome porque vivemos em Portugal, mas acho que vai diminuir a qualidade alimentar.
As pessoas vão prescindir de algumas coisas que, se calhar, deviam fazer-lhes falta, sobretudo quando têm necessidade, por razões de saúde, de suplementos alimentares. Portanto, vai piorar a saúde. E vai haver mais pessoas a procurar todas as facilidades que possam ter em termos de doações de alimentos que podem ser pela Cáritas ou por outras instituições. Até pelo Banco Alimentar Contra a Fome. São desafios muito grandes. Tenho algum pudor em dizer que vai aumentar a fome. Acho que nós ainda temos recursos internos que podemos coordenar para que cheguem a quem mais precisa.
Mas esse movimento solidário vai estar é sobre uma enorme pressão. Imagino...
Sim, claro que sim. Mas também é preciso estar muito atento à organização, para que seja, de facto, distribuído da melhor maneira para não criarmos desperdícios num sítio e défices noutro.
Essa pressão sobre o movimento solidário tem a ver com os recursos que ele consegue amealhar. Teme que o peditório nacional, que é uma das principais fontes de rendimento Cáritas, possa registar uma queda de receita?
Eu tenho esperança que não. O natural será pensarmos que sim, porque quando as pessoas estão já muito afrontadas e sabendo nós, como sabemos, que alguns dos nossos doadores já foram apanhados na situação da crise, o natural será dizer que sim, que iremos ter mais dificuldades. Por isso, o meu apelo é para que as pessoas não pensem que só podem ajudar se tiverem uma determinada disponibilidade. Eu costumo dizer: "Um euro, ou uma hora." É por isso que o nosso lema "Caritas, o Amor que transforma" é tão significativo, que nós não conseguimos largá-lo. Há dois anos que temos este lema e, quando reunimos e pensamos qual vai ser o lema da semana Cáritas, não conseguimos sair disto, porque isto é a génese, é a verdade.
As pessoas têm, às vezes, vergonha de não poder dar mais. Isso não pode acontecer. Nós, neste momento, temos que estar todos uns para os outros. Aquilo que às vezes nos pode parecer ridículo doar pode ser muito importante. Assim todos tenhamos consciência de que esta crise há-de ser ultrapassada e eu acredito que sim, mas tem que ser com o contributo de todos.
Analisemos agora um pouco o conjunto das medidas avançadas pelo Governo para mitigar ou fazer face às dificuldades. Em setembro, o executivo avançou com oito medidas. A esta distância, já perdemos completamente os seus efeitos?
Nós não temos medidas estruturais, ainda. E enquanto tivermos medidas pontuais, tudo se esgota muito rapidamente. Não produz nenhum efeito na diferença da vida das pessoas. Esgota-se no tempo da duração financeira. O que eu acho interessante é que tantas vezes a mim me foi perguntado se a nossa ação não era caritativa, assim como se fosse uma coisa de menor valia. E eu sempre disse que o nosso sonho, aquilo que gostaríamos de atingir era poder promover a inserção das pessoas. Não era, claramente, jogar só na emergência.
O problema é que nós não estamos a conseguir sair da emergência. E agora parece que nem o Estado está a conseguir, porque o próprio Estado está a fazer [trabalho] sócio-caritativo. Acaba por ser quase uma esmola, que se esgota também como qualquer esmola. Faz uma diferença: cria uma alegria, e eu não quero desvalorizar isso. Não é isso que está em causa. É muito importante para qualquer pessoa ter - e então, numa situação de grande desalento mais ainda - ter um apoio. É significativo, é importante, mais que não seja pela autoestima, para a alegria que dá naquele momento. Agora, não faz a diferença e esgota-se.
Na altura, precisamente em setembro, dizia, em entrevista à Renascença e à Ecclesia, que os apoios não resolviam a vida de ninguém e que chegavam tarde. No presente, tardam outras e novas medidas ou falta de facto a essa referência estrutural?
Sim e sim. Falta a referência estrutural. Não temos feito grande caminho, desse ponto de vista. Naturalmente, na situação em que estamos, com os aumentos de custo de vida, das coisas essenciais não há como não agir em emergência. Neste modelo pontual e em consciência de que ele não resolve a vida das pessoas.
Um dos temas em que Cáritas tem investido, até do ponto de vista do estudo, tem sido o tema da habitação. Foi anunciadoum pacote de medidas, mais ou menos polémicas que estão em consulta pública até 10 de março. Parece-lhe que é um pacote de medidas equilibrado?
Naquilo que diz respeito às questões políticas, nem tenho opinião. No que diz respeito às questões completas, assusta-me um bocadinho porque ouvi falar de projetos concretos de construção de rendas acessíveis e não vejo isso acontecer. E agora vejo procurar ao lado. É sempre esta mágoa que fica de que nada chega ao fim. Se há projetos para fazer, para se investir na habitação condigna para todos, porque é que chegamos a este ponto e o que estava planeado não se fez e está-se a ir a outra coisa? Que ainda por cima é polémica, que levanta imensas questões ao nível da confusão dos direitos básicos e constitucionais. Temo que seja mais um espaço de grande discussão, animação do diálogo forte para não ter consequências.
A habitação é o principal escolho na resolução de problemas sociais, porque podemos estar todos relativamente equilibrados, mas o problema afronta todos. Afronta os idosos, que estão a ser expulsos por causa dos "short rental" e afins. Envolve os jovens, que não conseguem ficar nos sítios onde têm emprego.
São problemas a longo prazo da sociedade, porque não têm só a ver com o facto de a pessoa ter ou não um sítio onde ficar, tem a ver com o seu projeto de vida, com aquilo que a define. Tem a ver com o futuro de nós todos e do país. E também dos estrangeiros que estamos a receber. Nós convidamos as pessoas para vir, mas, se não conseguimos resolver os problemas dos nacionais, como é que vamos ter espaço para resolver os problemas de quem chega? Tínhamos que criar as condições para poder receber as pessoas. E depois vemos até alguma revolta social, porque as pessoas começam a ver medidas tomadas para grupos. Resolve-se os problemas de uns grupos, mas não se resolve os problemas que estão na génese dos problemas de todos.
Acaba-se por potenciar os extremismos?
Eu acho que estamos a facilitar. Não sei se estamos a potenciar, mas a facilitar estamos, claramente.
O número de pessoas em situação de pobreza em Portugal é dramático. Sem apoios sociais, sabemos, mais de quatro milhões de pessoas seriam pobres. Sem fazer futurologia, estes números poderão pecar por defeito, no final do ano?
Eu sou eu sou uma desalentada dos números. Portanto, tenho muita dificuldade em responder a isso porque todas as taxas, estatísticas e coisas que aparecem são absolutamente cor-de-rosa e com solução. Diminui a pobreza, temos pleno emprego…
A taxa de desemprego aumentou em janeiro…
Pois é, no meio de tanto cor-de-rosa, uma pinta de outra coisa parece nem fazer a diferença. Uma taxa é um número relativo que faz referência a uma mediana de qualquer coisa. É tão estranha para mim a diminuição da taxa de risco de pobreza como é insuficiente a diminuição da taxa da inflação. Porque é mesma coisa.
Houve números que diziam que tinha diminuído a taxa de inflação. Vamos lá ver em que produtos é que diminuiu: vemos que não é na alimentação. Ou a taxa de inflação influencia os bens básicos para a sobrevivência e bem-estar das pessoas ou é um número que não interessa para nada.
Uma pessoa pobre não é um número para a Cáritas…
Não, não é, de todo. Tem um nome, uma família, tem um conjunto de recursos e um conjunto de fragilidades.
A Cáritas tem preocupações que se alargam a crises noutros países, como aconteceu com o recente sismo na Turquia e Síria, bem como nas crises de refugiados ou com a guerra na Ucrânia. Teme que a resposta solidária seja comprometida pelas dificuldades da população portuguesa, neste momento?
Acho que estará comprometida, até por outras razões, mas, no que diz respeito à ação Internacional da Rede Cáritas, devo dizer que tenho um enorme orgulho em pertencer a esta rede. Quando uns podem mais, outros podem menos, a rede funciona no seu conjunto. Não interessa quanto é que deu a Maria, quanto é que deu o Manel. Ou seja, quanto é que deu Portugal, quanto é que deu Espanha ou os Estados Unidos ou Moçambique. Vale aquilo que a rede consegue fazer.
O nosso sistema de funcionamento em rede faz com que chegue às zonas de emergência aquilo que se pede. É muito concreto: é preciso x dinheiro para comprar isto, para fazer isto, para concluir isto, durante não sei quanto tempo. Ao fim desse tempo, avalia-se, audita-se e o dinheiro é claramente entregue a quem precisa.
Essa transparência também é uma mais-valia? Vimos isso em Portugal, por exemplo, na questão dos projetos de apoio às pessoas afetadas pelos incêndios: sabia-se exatamente para onde é que tinha ido o dinheiro da Cáritas...
Sim, isso é uma marca que nos honra, tentamos, por todos os modos, encontrar a transparência. Não podemos falar de diminuição ou aumento sem ter isso em consideração. A nossa aposta é que o propósito de cada pessoa seja concretizado e isso tem de se fazer com transparência. Seja nacional seja internacionalmente, tenho sentido, nos últimos anos, que o dinheiro chega à Cáritas, as horas que chegam à Cáritas, as pessoas que chegam à Cáritas, chegam confiando de que isto vai acontecer. Posso dizer que o meu maior objetivo é que assim aconteça.
A estratégia nacional de combate à pobreza foi publicada em Diário da República no final de 2021. Quase um ano depois, o Governo nomeou Sandra Araújo para assumir a sua coordenação. Quanto tempo mais iremos ter de esperar para sentir os seus efeitos?
Naturalmente, não estávamos à espera de que os efeitos fossem imediatos. Tenho como convicção que uma estratégia não é uma forma de resolver um problema agudo, é uma forma de olhar o futuro com um caminho.
A doutora Sandra Araújo foi nomeada muito recentemente, ainda está a dar os primeiros passos. Aliás, nós convidámo-la para ir ao Conselho Geral. Fica o convite outra vez. Gostávamos muito de a ter e somos uma rede que pode ajudar.
É por aqui que tem de passar essa tal resposta estruturada, de que vem falando ao longo desta entrevista?
Sim, claro que sim. Uns podem dar a estratégia e outros podem dar a proximidade. Sem as duas coisas, os problemas não se resolvem. A Cáritas pode dar a proximidade.
Voltamos ao início da entrevista e aos ciclos que não se conseguem quebrar, porque é uma preocupação que que acompanha quem estuda o fenómeno e que acompanha quem está no terreno. Olhando para a famosa "bazuca", o PRR, falta uma maior mobilização destes fundos para o combate à pobreza?
Acho que eles podiam ser muito importantes, se forem utilizados de forma consistente no futuro. Quero dizer: que não seja só para resolver só situações pontuais, porque é um problema estrutural e sem cortar essa linha não é possível.
Devo dizer que não senti ainda muito o PRR. E tenho pena, porque temos um tempo para o usar. Isto é um empréstimo e, se não utilizarmos como deve ser, corremos o risco de ficar empenhados sem proveito.
Temos tido a indicação de fundos do PRR para este e aquele setor, mas são poucas as referências aos fundos da "bazuca" para o combate à pobreza, para o combate às desigualdades…
Pois é, não é muito concreto. Estamos agora a tentar colaborar numa área que visa habilitar Portugal com uma rede de alojamento de emergência. Mesmo a nós, que fomos inicialmente abordados para saber que potencial é que a Igreja poderia ter para colaborar, passou-nos completamente despercebido a abertura da chamada. Há aqui também um problema de informação - e eu digo informação, não é informação nos lugares chiques, é informação a quem pode dar e fazer a diferença.
Tem de ser uma coisa muito ágil e muito próxima. Se vamos achar que basta dar esta informação a esta pessoa que representa o setor, estamos a pôr uma responsabilidade enorme na pessoa e não vamos ter informação no setor.
Podemos estar perante uma oportunidade perdida?
Podemos, mas eu acho que ainda vamos a tempo, desde que, muito rapidamente, se acione isto. Não acredito que seja uma coisa muito difícil. Acho que é fácil. Temos é de ir ao essencial e deixar aquilo que é acessório.