Luaty Beirão, reagindo à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de enviar para Angola o processo envolvendo Manuel Vicente, afirmou à Lusa, em Luanda: "É preciso uma grande dose de fé e um grande exercício de negação do óbvio para dissociar essa decisão de interferência política no poder judicial, cuja credibilidade sai beliscada".
Este tribunal considerou que a aplicação em Angola da lei da amnistia aos factos imputados a Manuel Vicente, no processo da Operação Fizz, "não põe em causa a boa administração da Justiça". Luaty Beirão foi um dos 17 ativistas que cumpriram pena, em 2016, por condenação de um tribunal de Luanda.
Também à Lusa, a eurodeputada socialista Ana Gomes declarou que a transferência do processo do ex-vice-Presidente angolano Manuel Vicente para Angola é uma "tremenda demissão" da justiça portuguesa, baseia-se em argumentos hipócritas e não vai aliviar a relação entre os dois países.
Para o Governo português, a sentença do Tribunal da Relação de Lisboa afastou um empecilho “irritante” nas relações luso-angolanas. Beneficiarão, espera-se, empresas portuguesas que exportam, ou exportavam, para o mercado de Angola, bem como milhares de portugueses que ainda trabalham naquele país (muitos já voltaram).
Creio que a possibilidade de Luanda exigir a Portugal um pedido de desculpas pelo atraso no envio do processo de Manuel Vicente (hipótese referida pelo “Correio da Manhã”) não se verificará, pois seria inaceitável. As boas relações luso-angolanas são incompatíveis com atitudes de subserviência do lado português, que infelizmente já aconteceram.
Mas será que existe, em Angola, “uma boa administração da justiça”, como afirma a sentença acima referida? Vigora ali um sistema judicial independente do poder político?
Com José Eduardo dos Santos (JES) na presidência daquele país, ao longo de 38 anos, manifestamente não. Os angolanos não acreditam que, em Portugal, o governo não manda nas decisões dos tribunais. A julgar pela agressividade manifestada em relação às autoridades portuguesas no caso Manuel Vicente, João Lourenço, o novo presidente de Angola (escolhido em setembro passado), não parece, também, ter compreendido a independência do poder judicial em relação ao poder político, em Portugal – independência que, como vimos, alguns hoje põem em causa por causa do envio para Angola do processo de Manuel Vicente.
João Lourenço surpreendeu ao afastar JES e os seus filhos dos cargos poderosos e rendosos que ocupavam (JES era até há pouco presidente do MPLA), bem como os aliados do antigo presidente nas forças armadas e nos serviços secretos. Um dos filhos de JES é acusado de fraude – veremos se terá um julgamento justo.
O aparelho repressivo montado por JES ao longo de décadas não foi desmantelado. Mas a repressão tornou-se menos violenta e a imprensa é um pouco mais livre. J. Lourenço lançou uma campanha contra um dos grandes males de Angola, a corrupção. Sabe-se, porém, como estas campanhas, em si louváveis, podem tornar-se em instrumentos de poder pessoal e de controle da sociedade – veja-se a campanha organizada por XI Jinping, presidente da China.
É, porém, ainda cedo para saber se o novo presidente angolano pretende uma Angola mais democrática e menos corrupta, ou se sobretudo lhe interessa usar em proveito próprio e dos seus amigos o enorme poder que herdou do seu antecessor. As reformas que forem, ou não, realizadas na justiça de Angola, em especial a independência dos tribunais em relação ao poder político, serão um indicador importante.