Da eutanásia à educação. Movimento Ação Ética quer “temas importantes assumidos nos programas eleitorais”
16-01-2022 - 09:30
 • Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Médico Victor Gil, um dos fundadores do Movimento Ação Ética (MAE), fala do desafio lançado aos partidos para que esclareçam, antes das eleições, o que querem fazer em “questões essenciais”, que não se decidem em “jogos de tabuleiro” políticos. A população “tem o direito de ser informada” e é isso que o MAE quer ajudar a fazer.

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O Movimento Ação Ética (MAE) nasceu a 1 de janeiro de 2021 para ajudar a combater a “indiferença cívica”, o “relativismo ético” e o “défice de responsabilidade pessoal e social”. Um ano depois já contabilizam mais de uma centena de novos membros para continuar a ajudar a refletir sobre “aspetos determinantes” para o futuro coletivo.

No final de dezembro, a um mês das legislativas, o MAE desafiou os partidos a dizer o que pensam e querem fazer em “questões essenciais”, como a eutanásia e os cuidados em fim de vida, o combate à corrupção, a reforma do sistema eleitoral ou a objeção de consciência, entre outros.

Médico e professor universitário, Victor Gil presidiu nos dois últimos anos à Sociedade Portuguesa de Cardiologia e é um dos fundadores deste movimento cívico. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, faz o balanço do primeiro ano de atividade do MAE e dos projetos que têm para os próximos meses, e que passam pelo lançamento de um livro.

Sobre o repto aos partidos, diz que a população “tem o direito de ser informada” de forma fundamentada, e que tudo o que mexe com a vida das pessoas e o seu futuro deve constar dos programas eleitorais. E critica a falta de visão estratégica para setores fundamentais, como a educação e a saúde, onde a colaboração entre público e privado voltou a ser desprezada, sem ter em conta o que é melhor para a população.

Que balanço faz deste primeiro ano do Movimento Ação Ética?

Esta iniciativa resultou de conversas entre pessoas, não havia nenhuma ideia pré-concebida. Não nos conhecíamos todos em simultâneo, uns conheciam outros, e nessas conversas percebeu-se que havia preocupações comuns, e que havia a vontade de fazer qualquer coisa, nada do tipo partidário, ou desse género, mas um movimento cívico, vozes cívicas que também têm o direito, e se calhar o dever, de se expressar. Estas preocupações éticas eram transversais a todos nós, e foi por aí que começámos.

Desenhámos várias ações, primeiro um conjunto de ações de divulgação: demos algumas entrevistas, elaborámos alguns documentos, tomámos posição sobre algumas coisas. Foi quente a questão, por exemplo, das votações sobre a eutanásia. Tivemos oportunidade nessa altura de manifestar a nossa opinião do ponto de vista estritamente ético, e até sobre alguns aspetos mais jurídicos, porque temos um ilustre jurista dentro do grupo (Paulo Otero). E planeámos outras ações, das quais destaco a edição de um livro, que ocorrerá em breve.

É um livro dedicado aos jovens?

Inicialmente, tínhamos a ideia de fazer uma edição mais dedicada aos jovens, focada na Jornada Mundial da Juventude [JMJ]. Acontece que convidámos vários autores, algumas pessoas que são grandes especialistas de ética, outras que pura e simplesmente vivem as coisas sem ter alguma vez elaborado grandes teorias sobre os temas, e dessa mistura - que eu acho que foi muito simpática - resultou um conjunto de textos sobre vários temas.

A profundidade de alguns textos ultrapassa esse plano inicial de apenas tocar nessa faixa dos jovens, é um conjunto de testemunhos sobre vários temas éticos que vão interessar a toda a gente. Mas, temos também a intenção de ter algumas ações mais centradas na juventude e disponibilizámo-nos para colaborar com a organização da JMJ, nesse sentido.

Esse livro tem sido um dos nossos grandes trabalhos, mas agora, a propósito destas eleições, achámos que devíamos tomar posição chamando a atenção das várias forças políticas de que há temas que são muito importantes, axiomáticos, que têm que ver com a base de tudo, da organização e da própria vida em sociedade, e que são muitas vezes esquecidos.

Que questões fundamentais são essas que têm de ser esclarecidas para que os eleitores votem em consciência?

Selecionámos um conjunto de coisas. Vamos começar pelos temas ditos fraturantes. Houve recentemente uma iniciativa legislativa em relação à eutanásia, foi uma iniciativa em que houve uma enorme preocupação de rapidez de tomar uma decisão.

Em nossa opinião não houve uma discussão aprofundada, que procurasse alargar-se e perceber bem todas as implicações que isto tem, e penso que as pessoas foram numa certa moda, de um certo politicamente correto, e é muito difícil voltar atrás nestas decisões legislativas. Nesse aspeto estamos um pouco pessimistas. É um exemplo de um tema que foi apressadamente decidido.


A lei foi vetada, mas lendo os programas dos vários partidos às eleições do final do mês, há quem queira retomar o assunto, nomeadamente o Bloco de Esquerda, que tem no seu programa eleitoral o compromisso de legalizar a eutanásia.

Nós temos uma posição muito clara em relação a esse tema, e acho que uma voz como a nossa tem também de ser ouvida. A vida comunitária e a voz da comunidade não se circunscreve aos partidos políticos e às suas bases, ou às pessoas que andam nos partidos e nos sindicatos. Há outras vozes, outras pessoas que têm de ser ouvidas, e essas pessoas provavelmente refletem a opinião de muita gente. E a opinião também tem de ser formada.

Há muitas pessoas que olham superficialmente para os temas e têm de ouvir os argumentos. São temas demasiados sérios, são temas, em nossa opinião, civilizacionais. O que está aqui em causa serão para muitas pessoas opções religiosas, para outras opções culturais, mas em nossa opinião são muito mais profundas do que isto.

Estão a ser tomadas agora decisões civilizacionais, e nem toda a gente tem consciência das implicações que isto pode ter, daquilo a que nós chamamos - e que é desvalorizado por quem nos contradiz - a 'rampa deslizante'. Basta olhar para muitos outros países para ver o que é que está a acontecer e o que é que pode acontecer. De facto, há aqui perigos grandes e não sei se muita gente tem consciência disso.

Muitas vezes há uma atitude superficial de deixar passar as coisas. É evidente - ainda hoje vi números - que é muito preocupante saber-se que o poder de compra dos reformados vai ficar diminuído agora, porque o aumento é inferior à inflação. Claro que isso é terrível, mas há outras coisas que também são terríveis, quer pessoalmente, quer para a comunidade em que vivemos e, sobretudo, para o futuro. Que futuro é que estamos a preparar?

Seria importante que nesta campanha eleitoral todos os partidos, e especialmente os dois maiores partidos, deixassem claro qual é a posição que vão tomar no Parlamento se houver uma nova votação da lei da eutanásia?

Eu acho que isso é imprescindível, tem de ser clarificado e de uma forma fundamentada. Estas coisas não são 'sim ou não', estas coisas têm sustento, têm por trás um pensamento, e esse pensamento liga-se a outras coisas. Ou seja, a partir de uma determinada posição sobre um tema destes, nós inferimos que muitas outras coisas andam aí à volta e podem estar em causa.

Portanto, claro que isso tem de ser clarificado de uma forma muito fundamentada, para que isso ajude também a reflexão das pessoas. Nós não somos um movimento político, mas questionamos os políticos, porque são eles que depois vão colocar as coisas no terreno. E a população, a própria população tem o direito de ser informada e de ser informada fundamentadamente.


Esta questão da eutanásia não consta dos programas dos dois maiores partidos, PS e PSD, embora falem dos cuidados paliativos e cuidados continuados. Devia constar? E nos debates televisivos raramente tem sido focada. Devia ser, do vosso ponto de vista?

Evidentemente que estes temas importantes, que tocam em coisas muito profundas, têm de ser assumidos nos programas eleitorais. Claro que a maior parte das pessoas não tem o tempo suficiente para ler os programas dos partidos de A a Z, mas há resumos, os próprios jornalistas o fazem, e só podem fazer um resumo baseado no que está lá escrito.

Se não estiver lá escrito é uma dúvida, é uma nuvem, e essa nuvem serve para o que mais der jeito na altura. Um aspeto muito negativo de tudo isto é que, às vezes, temas destes são utilizados como parte de jogos políticos - se eu te apoiar nisto, tu vais apoiar-me naquilo. E estas coisas são demasiado sérias para serem jogos de tabuleiro. São coisas que tocam nas raízes éticas do modelo civilizacional que temos, e acho que é muito importante toda a gente ter consciência disto. E este é apenas um exemplo, porque há muitas outras coisas.

Outro tema referido, e que é uma questão específica da sua profissão de médico, mas não só, é a objeção de consciência. Sente, de alguma forma, que esse direito está a ser ameaçado?

É óbvio. Sabemos que na Europa já houve propostas. Isso ainda não chegou cá a Portugal, mas se houve na Europa, pode acontecer. Eu acho que o que era aqui há uns anos impensável, hoje é possível e às vezes é provável. Portanto, nós queremos antecipar uma reflexão sobre esta temática, porque a objeção de consciência - como diria um dos membros do grupo, jurista, o professor Paulo Otero, num excelente artigo que escreveu para o livro - é o último reduto da liberdade das pessoas em relação ao sistema, que pode não ser necessariamente um sistema libertador, mas impor um determinado pensamento único.

Portanto, a objeção de consciência é um último reduto, e nós chamamos já a atenção para isso. É outro tema que tem de ser clarificado: o que é que as forças políticas pensam sobre a objeção de consciência? Vão alargar o conceito? Vão restringir o conceito? Vão, como existe já nalguns países, dizer que se um médico é contra o aborto não pode trabalhar no Serviço Nacional de Saúde? Eu não digo que alguém defenda isso, mas gostava de ouvir dizer que não, que cá não é assim. É mais um assunto que deve ser clarificado.

Entre os fundadores do MAE, para além do senhor, estão o economista Bagão Félix, o jurista Paulo Otero e o psiquiatra Pedro Afonso. Há várias sensibilidades e áreas de formação, que fazem com que a vossa reflexão seja bastante sobre temas que seria necessário esclarecer, nesta altura, pelos partidos. No comunicado que divulgaram há um mês abordam outros temas, como a corrupção, a reforma do sistema eleitoral e a educação. Isso está a ser esclarecido?

A corrupção é um tema de moda, um bocadinho, e toda a gente toca nisso. Mas, infelizmente e recorrentemente, vamos sempre vendo que há coisas que não foram cumpridas e há um conjunto de medidas que não foram tomadas. Tenho a esperança de que esse seja um tema que, no futuro, venha a melhorar.

Quanto ao sistema educativo, penso que há uma grande confusão. Uma coisa é a tolerância, a educação para a tolerância, para a aceitação da diferença – que é também a tolerância para com os mais frágeis, os mais diminuídos, os mais diferentes, se quiser –, e outra coisa é ideologia de género. Confunde-se muito isso.

Ter tolerância pela diferença não significa impor uma ideologia que, na nossa opinião, existe neste momento, no sistema educativo oficial. É um aspeto que tem de ser clarificado. Quando se diz que não se concorda com a ideologia de género, parece que quem pensa dessa maneira é contrário à aceitação da diferença. Não é nada disso: a aceitação da diferença, a tolerância e o respeito implicam a aceitação de que esta casa, esta cidade onde vivemos, acolhe também os mais frágeis, os mais desprotegidos, os mais diminuídos. E não só nesse aspeto, que tem vindo a ser referido.


Mas a questão da ideologia de género não é bem explicada…

Não, não é bem explicada, nem é assumido que se vai impor. Mas ela está lá e é essa desmontagem que é necessária.

Quer dar exemplos?

Eu não sou especialista em ciência educativa, mas há tentativas. Tenho dois netos, rapazes, que nunca obriguei a brincar com carrinhos, era espontâneo, da parte deles, encontrava-os lá em casa. Impor às crianças que têm de brincar com bonecas, porque é a sociedade que os vai moldar, é pôr as coisas ao contrário: está a querer-se impor aquilo que espontaneamente não acontece.

Outra questão sobre a educação e a saúde, que tem estado nos debates, é o princípio da subsidiariedade, um dos grandes princípios da Doutrina Social da Igreja, a relação entre o público e o privado, que em Portugal é um foco de tensão. Que reflexão faz sobre este tema?

Em primeiro lugar, essa subsidiariedade tem que ver com a noção de um Estado centralista, que aglutina tudo, sem aceitar que as pessoas também têm cabeça, vontade própria, e a níveis mais básicos podem entender-se umas com as outras e resolver problemas. Isso não tem nada que ver com modelos de regionalização, que vão criar depois novas ocupações para os amigos.

Falamos aqui de o Estado respeitar a iniciativa privada e as suas estruturas…

Privada, social, cooperativa, associações, etc... Em determinadas ocasiões, viam-se umas caricaturas, dos capitalistas com os caninos a pingar sangue… o capitalismo selvagem é qualquer coisa que ninguém defende, nenhuma pessoa de bem defende, hoje em dia. As empresas também têm objetivos sociais, um empenhamento social.

Tenho tido a felicidade de trabalhar para alguns grupos privados que não são, propriamente, exploradores os doentes, na saúde. Têm a preocupação de lhes prestar cuidados, o melhor possível, obviamente dentro das regras do mercado, que implicam depois a negociação com os seguros, etc…

Se todos estamos aqui para tentar servir a comunidade, não é só a questão da universalidade dos cuidados, que o Serviço Nacional de Saúde, em princípio, deveria assegurar. É também o problema do acesso. Se há problemas que se podem minorar através de cooperação com outras entidades, isso deve ser feito, deve ser fomentado. Não parece que a tendência seja essa, já foi maior, neste momento a tendência é outra vez de fechar o Serviço Nacional de Saúde, mais estatizado, e os outros, por enquanto, há tolerância, permite-se a sua existência, mas não se entende isso como uma cooperação a favor da população. “Se não houver mais nenhuma possibilidade, então lá vamos”. Mas pensar que isto pode ser uma coisa boa, em favor da população, com regras definidas e que sejam claras. Esse era um caminho que se deveria seguir, aqui como noutras áreas.


Ao longo deste primeiro ano de atividade, o MAE teve oportunidade de se reunir com representantes de instituições e partidos políticos?

Não. Pensamos que não o devíamos fazer, ainda.

Mas é uma intenção, para o futuro?

Este texto que fizemos é um texto público, não é focado em ninguém, particularmente. De qualquer modo, temos contactos pedidos, com entidades, e já fomos recebidos por uma ou outra. Há vontade de conversar, de apresentar as nossas ideias, mas não houve uma intenção deliberada de falar com todos os partidos políticos. Se sentirmos que há vontade de conversar connosco, estamos completamente disponíveis.

Ao longo deste ano, aderiram outros membros ao MAE?

Muitos mais. Nós fazemos isto para além de uma atividade profissional, que no meu caso continua a ser muito ativa. Fazemo-lo por gosto, por empenhamento, por sentido de dever cívico, mas com muito pouco tempo. Portanto, não temos uma estrutura criada, estamos a tentar estabelecer as suas bases, mas houve muitas pessoas que, espontaneamente, comunicaram connosco. Neste momento, temos larguíssimas dezenas, para não dizer já mais de uma centena de nomes, alguns deles com muito envolvimento na vida cívica, que querem ter uma participação mais ativa.

A nossa atividade, agora, centrou-se no livro, e resolvida esta questão, vamos fazer outras ações, alargando muito mais o leque e envolvendo outras pessoas que manifestaram já a sua vontade de colaborar e partilhar a nossa forma de ver estes temas.

Quando é que o livro vai ser apresentado?

Ainda não temos data, já recebemos os últimos textos e agora há o trabalho editorial. Gostaríamos de fazer um lançamento público, presencial, com uma grande iniciativa, que agitasse. A vida também são os valores, a ética. Vamos ver quando é que há oportunidade. O trabalho editorial levará algum tempo, há revisão, isso tudo, mas no primeiro semestre deste ano haverá novidades, se a pandemia nos permitir.