Há 70 anos, a maioria das pessoas não morria de cancro ou de doenças cardíacas, as doenças que nos afligem hoje em dia. Não morriam dessas doenças porque não viviam o suficiente para as contrair. Morriam de ferimentos — a marrada dum boi, um tiro no campo da batalha, esmagados numa das novas fábricas da Revolução Industrial — e quase sempre de infeções, que acabavam o que esses ferimentos tinham começado.
Tudo isso mudou quando apareceram os antibióticos. Subitamente, as infeções, que representavam uma sentença de morte, tornaram-se numa coisa de que recuperávamos em dias. Parecia um milagre...
Desde então, temos vivido dentro da era de ouro dos fármacos milagrosos. Agora, estamos a chegar ao fim dessa era; estamos no limiar da era pós-antibióticos, nos primeiros dias de uma época em que simples infeções voltarão a matar pessoas. Na realidade, já estão a matar. Há novamente pessoas a morrer de infeções por causa de um fenómeno chamado resistência das bactérias aos antibióticos.
Seria natural ter esperança que estas infeções fossem casos extraordinários mas, na verdade:
- Na Europa os dados conhecidos falam de 25 mil mortes
- Nos EUA e na Europa, morrem 50 mil pessoas por ano de infeções que nenhum antibiótico consegue combater
- E mais grave, as estimativas de um projeto desenvolvido no Reino Unido pelo “Antimicrobial Stewardship Programme “ apontam, atualmente, para cerca de 700 mil mortes por ano! Além disso também prevê que, se não conseguirmos controlar esta situação até 2050 — não falta muito — o total mundial será de 10 milhões de mortes por ano.
Durante 70 anos, temos andado a saltar ao eixo — um novo antibiótico e a sua resistência, e depois um outro e, novamente, outra resistência— mas agora o jogo está a acabar. As bactérias desenvolvem resistência tão depressa que as empresas farmacêuticas deixaram de ter interesse em desenvolver antibióticos; há 30 anos que não aparece um novo antibiótico no mercado.
Além disso, se compararmos a penicilina e o tempo que demorou a aparecer a resistência, aproximadamente 12 anos, e o cenário mais recente, em que muitas vezes a resistência é desenvolvida ao fim de 5/6 anos, a imagem é desoladora… Quem irá investir dezenas de anos a desenvolver um fármaco que se torna ineficaz em cinco anos?
Mas o que nos custa a imaginar é que os antibióticos estão na base de quase tudo na vida moderna. Se perdermos os antibióticos, aqui está o que também vamos perder:
- A proteção para as pessoas com sistemas imunitários enfraquecidos — doentes cancerosos, doentes com SIDA, recetores de transplantes, bebés prematuros…
- A possibilidade de executar qualquer tratamento que instale corpos estranhos no corpo: próteses, diálises, substituição de articulações…
- A seguir, provavelmente perderemos a cirurgia…
- Mas, mais do que qualquer outra coisa, perderemos a forma confiante e livre com que vivemos a nossa vida quotidiana. Se soubessem que qualquer lesão poderia matar-vos, andariam de bicicleta? Praticariam surf? Subiriam a um escadote para pendurar as luzes de Natal?
Afinal, a primeira pessoa a tomar penicilina, um polícia britânico, chamado Albert Alexander, foi infetado por uma coisa muito simples: arranhou a cara num espinho ao passear num jardim.
Resgatando Alexander Fleming, o homem que descobriu a penicilina e que foi laureado com o Prémio Nobel em 1945: "A pessoa descuidada que brinque com o tratamento com penicilina é moralmente responsável pela morte de um homem que sucumba a uma infeção com um organismo resistente à penicilina." E acrescentou: "Espero que esse mal possa ser evitado."
Mas não foi…
Esta é uma guerra assimétrica, mas temos a responsabilidade de fazer tudo para alterar o seu desfecho.
Podemos construir sistemas de monotorização e rastreabilidade dos fármacos e dos doentes eficientes e eticamente sustentáveis tal como vertido no documento Europeu “Orientações da UE para a utilização prudente de agentes antimicrobianos no domínio da saúde humana” ou como o Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistências aos Antimicrobianos da Direção-Geral de Saúde (DGS) já a funcionar em muitas unidades de saúde.
É preciso fomentar a investigação em novos antibióticos, coisas que as super-bactérias nunca viram antes. Precisamos desesperadamente dessas novas drogas, de novas estratégias e precisamos de incentivos: bolsas de investigação, patentes alargadas, prémios, atrair outras empresas para produzir novos antibióticos.
Mas, provavelmente, isso não será suficiente! A evolução vence sempre e as bactérias dão origem a uma nova geração de 20 em 20 minutos. A química farmacêutica demora 10 anos a desenvolver um novo medicamento.
Assim, estas soluções técnicas, só por si, não serão suficientes; precisam da nossa ajuda. A resistência antibiótica é um hábito… todos sabemos como é difícil mudar um hábito! Mas essa é a nossa história, já fizemos isso no passado e temos de assumir essa responsabilidade individualmente.
As pessoas costumavam deitar lixo na rua, não usavam cintos de segurança, fumavam dentro dos edifícios públicos; já deixámos de fazer essas coisas. De facto, constantemente somos forçados a alterar os nossos comportamentos e a adequá-los às normas sociais. Também temos essa responsabilidade em relação ao uso dos antibióticos. Temos a responsabilidade de cada um dar um pequeno passo para a solução de um problema esmagador… mas temos de o fazer depressa!
Em 70 anos apenas, avançámos até à beira do abismo. Não vamos ter 70 anos para encontrar o caminho do regresso.
Ana Sofia Carvalho, Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa