O Governo angolano “devia ser mais inclusivo”, afirma o diretor da Cáritas Angola, José Quintas Tchavenda Segunda, em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia.
Em Portugal para aprofundar o projeto “Cáritas Lusófonas em Rede”, José Quintas defende que o executivo de João Lourenço deveria “fazer um trabalho muito mais de conjunto para não depender só do petróleo”.
O responsável pela Cáritas Angola entende que, “assim como chama certas instituições para auscultação de várias matérias, também deveria chamar outras que estão mais nas comunidades para auscultar sobre que recursos existem na zona”.
Nesta entrevista Renascença/Ecclesia, José Quintas diz que, “neste momento, Angola vive a questão da seca, fome, estiagem, peste de gafanhotos, nas províncias do Sul” e revela que, “em parceria com algumas instituições públicas, a Cáritas está lá para dar o seu suporte, no mapeamento das famílias”.
Que importância dá ao projeto “Cáritas Lusófonas em Rede”?
Antes de tudo, quero agradecer o convite que me foi formulado e à Cáritas Portuguesa, por esta oportunidade de ter um projeto em rede, que é muito importante para nós. Ajuda-nos a ver o que não podemos ver e a melhorar o que não conseguimos observar. O projeto, em rede, serve para criar sinergias e trabalhar melhor nesta causa social, através da Cáritas.
O projeto tem como meta “melhorar a qualidade, eficácia e eficiência na resposta”. Como é que isto ajuda a Cáritas Angola na sua resposta às populações mais vulneráveis?
Este projeto, que está já na fase final – e que provavelmente teremos de renegociar, expandir cada vez mais – é mesmo para melhorar a qualidade da gestão, dentro das exigências da Cáritas Internacional, os seus padrões, nos nossos projetos. Isso é importante para nós, do ponto de vista de doadores e beneficiários.
Esses parâmetros de gestão ajudaram a Cáritas de Angola a ter uma visibilidade mais credível e também a saber medir o impacto dos projetos, nos beneficiários. Queremos melhorar cada vez mais a nossa ação social, para que a nossa resposta seja pronta, evangélica, profética, também na verdade e na caridade.
E onde se encontram as populações mais vulneráveis?
Estão por toda a Angola. As comunidades que precisam dos serviços da Cáritas estão por todo o país. Só para fazer um recuo histórico, a Cáritas foi a única organização que, durante os tempos de conflito, a acudir às várias situações pelas quais os angolanos passavam, nacionalmente falando. De lá para cá, depois do conflito, a Cáritas tinha de se reinventar, para uma Cáritas mais de sustentabilidade do que de emergências, apenas. Em Angola não temos muitos catástrofes, com exceção das chuvas, às vezes, estamos voltados a uma Cáritas de sustentabilidade, por isso é que este projeto veio dar um impacto para melhor servir as nossas comunidades.
Neste momento, Angola vive a questão da seca, fome, estiagem, peste de gafanhotos, nas províncias do Sul. Em parceria com algumas instituições públicas, a Cáritas está lá para dar o seu suporte, no mapeamento das famílias.
A Caritas de Angola lançou este ano a Rede de Desenvolvimento Rural e Agricultura Sustentável (REDRAS). O objetivo é influenciar as políticas públicas na procura de soluções sustentáveis mais justas?
Dentro das várias intervenções, temos este projeto do REDRAS, que surgiu após o conflito, sublinhando que a Cáritas, depois do tempo das emergências, queria fazer algo. Coordenamos vários programas a nível das Cáritas diocesanas, fazendo uma advocacia da agricultura familiar, sustentável e orgânica. Com este projeto, não pretendemos produções em grande escala: as comunidades produzem pelo número de famílias que elas têm. Esta agricultura ajuda a manter as comunidades, muitas delas muito distantes entre si – 15, 20 quilómetros – através de uma agricultura sustentável, familiar, e isso pode resolver muitos problemas.
Entre elas nós temos a comunidade dos Khoisan, no Lubango, é uma comunidade de uma tribo nómada. Fizemos um trabalho, através de outras organizações, em rede, parceiros da sociedade civil, para que saibam produzir, onde estão, para que elas se mantenham.
Sabemos que, recentemente, se reuniu com altos quadros do Governo angolano. Como está essa relação com o Governo de João Lourenço?
Dentro do projeto que temos com a Cáritas Portuguesa na rede “Inovar para o Impacto”, temos um pilar que são as parcerias. Temos feito parcerias com várias instituições do Governo, do Estado angolano. Mesmo que eles afirmem que a relação com a Cáritas, com a Igreja, é antiga, mas queremos formulá-la, de uma forma nova, com protocolos.
Até porque os problemas são novos…
Sim, há problemas que são novos. E dentro de um novo acordo que existe entre a Santa Sé e o Governo angolano temos estado a dialogar, de modo que as nossas ações sejam um pouco mais formalizadas, visíveis. Temos tido uma boa relação, fomos recebidos recentemente pelo vice-presidente da República, a quem apresentamos a nossa ação, atualizando os nossos objetivos, o nosso plano estratégico para os próximos anos.
A Cáritas estará sempre presente e precisa do apoio, do suporte das instituições do Governo, uma vez que serve em Angola e não devemos buscar parceiros só fora do país.
Qual a atenção dada pelo Governo à luta contra a pobreza?
Existem programas para o combate à pobreza, como o Kwenda, que está a oferecer alguns subsídios. A intenção do programa é muito boa, vimos os seus objetivos, as metas, os indicadores esperados, mas às vezes encontramos algumas falhas na implementação. Nós, Cáritas Angola, fomos contactados para que, dentro da Arquidiocese de Luanda - onde se estão a criar alguns focos para elevar o nível das famílias através da formação profissional que gera emprego -, trabalhemos numa maquete, dentro das nossas instituições. Reunidos com a comissão organizadora desse projeto, entendemos que as suas metas são muito ambiciosas, em termos de resultados.
Um dos coordenadores dizia: “nós não queremos aqui projetos lúdicos, românticos, digamos, que falem. Queremos projetos que ajudem as pessoas”. O que é que isso significa? Alguém faz um curso de serralharia, costura, decoração e isso não lhe vale só um diploma, mas sim o que aprendeu, de modo que ao sair do curso, possa trabalhar e vender estes serviços. Depois, também, tem um fundo para que, quem termina o curso, comece com alguma coisa, um empréstimo que vai devolvendo, aos poucos.
Vejo que, dentro das políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento e de Combate à Pobreza, há indicadores, há vontade política de se combater a pobreza, mas depois vemos certos mecanismos que podem falhar: a supervisão, a implementação, a capacitação das pessoas que estão num programa. Vemos que, na teoria, funciona bem e, nalguns lugares, até funciona, mas noutros lugares fracassa, por causa dessa monitorização. Também penso que faltam pessoas entregues à causa, para que dê certo, porque alguns dizem: “é do Estado, é do Governo, vamos aproveitar”. Há pessoas que têm essas intenções, o projeto é para ajudar as famílias, mas procuram aproveitar-se, sem a dimensão da paixão por algo que pode mudar a vida delas e dos outros, também.
O contexto socioeconómico angolano continua a ser marcado pelo espectro da crise e pelas crescentes dificuldades das famílias e empresas? Estão a ser estudadas alternativas para tentar minimizar a dependência económica do petróleo?
Estão-se a aplicar algumas políticas para não depender só do petróleo, sobretudo com investimento na agricultura. Mas, mais uma vez eu faço uma observação: o nosso Governo, para tanto, precisaria de ser mais inclusivo. O que é que eu quero dizer com isso? Ele precisa que na luta ou no combate à pobreza, assim como a não dependência exclusiva do petróleo fosse muito mais inclusiva.
Assim, como chama certas instituições para auscultação de várias matérias, também deveria chamar outras que estão mais nas comunidades para auscultar sobre que recursos existem na zona. Que recursos existem em Benguela, que recursos em Cabinda dos já conhecidos fora do petróleo, que terras férteis nós temos? Ou seja, deveríamos fazer um trabalho muito mais de conjunto para não depender só do petróleo.
E eu aqui quero mencionar uma dimensão. Durante o tempo do conflito nós tivemos angolanos dentro da cidade e angolanos fora da cidade. Aqueles angolanos fora da cidade, eles palmearam território. Aqueles angolanos dentro das cidades também o fizeram. Muitos daqueles angolanos que estavam muito mais fora das cidades conhecem muito melhor as terras de Angola. E a minha pergunta é: num projeto de inclusão para fazer um “boosting” da economia sem o petróleo nós não devíamos congregar essas partes? É certo que politicamente isso pode não ser aceite, porém nós devemos pensar que somos todos angolanos. Tanto da oposição como do Governo...
Ainda há pouco tempo, os bispos da Conferência Episcopal voltaram a manifestar a sua preocupação com a pobreza extrema de muitas famílias angolanas.
Como ia dizendo, nesta política, nós devemos ser inclusivos e já vou chegar a essa questão da pobreza. E ser inclusivo é chamar toda essas sensibilidades de angolanos para que se criem políticas um pouco mais reais, mais práticas, mais visíveis que não tenham diferenças, nem cores partidárias, mas que reflitam o projeto de uma Angola para sair desta dependência apenas do petróleo. Porque, quando o barril sobe estamos alegres, mas quando baixa de novo, ficamos nesta oscilação.
Temos vários recursos. E eu vou lembrar que em Angola, em média, cada província tem dois rios, e temos recursos naturais; e então é importante apostar nos recursos humanos que nós temos. Unir, aproveitar as suas capacidades para uma Angola diferente.
E constantemente os nossos bispos têm apelado e têm indicado também os índices de pobreza que o país está a viver. E no domingo, na celebração dos 50 anos da Diocese de Benguela, onde foram ordenados 24 diáconos para sacerdotes e enviados a dioceses de Benguela e também para cá para Portugal para Coimbra, para dizer da universalidade da Igreja e a sua preocupação na evangelização; os bispos voltaram também a falar na dimensão social. Os bispos têm apelado ao dizer que o Governo tem de ser um pouco mais realista a acudir às várias situações de pobreza.
Recursos nós temos, e bem geridos, porém falta que por parte de nós angolanos tenhamos esse coração desprendido de evitar a ganância, a corrupção, ou aquela ideia de que só eu posso ter, o outro não. E nisto, a nossa Igreja tem apelado.
Nós, como Cáritas de Angola, estamos a pensar em algumas estratégias, além das que já existem e que fazemos há anos. Pensamos noutras estratégias um pouco mais de sustentabilidade nas comunidades, daí que este projeto que estamos a fazer com a Caritas portuguesa é importante para esta viragem social das nossas dioceses, porque, quer queiramos ou não a Igreja Católica através da sua ação social é um ator muito importante no bem-estar das populações, pois são todos e todas filhos de Deus. E a Igreja não faz aceção de religião, de cultura ou de partido político porque somos todos filhos da mesma terra, da mesma humanidade; filhos e filhas de um só Deus.
Há um fator global que tem um grande impacto na vida dos povos, que é a atual pandemia. Qual o impacto da Covid-19 na realidade nacional?
Sim, tem tido. Este é um facto conjuntural que em Angola tem muito impacto. As restrições para a prevenção e contenção da pandemia afetam as famílias e essas famílias trabalham. Não trabalhando as empresas fecham. As empresas fechando, as pessoas ficam sem trabalho, e sem recursos financeiros.
Ao nível do Governo não temos subsídios visíveis para suster aqueles funcionários públicos ou privados que perdem os seus postos de trabalho. Assim como também o crédito às micro e pequenas e médias empresas que podem fechar por falta de recursos, provocados por esta pandemia, não estão a chegar. Então, deveria haver um reforço às empresas, às PMEs, pois sabemos que elas representam 90% da economia do país, porque as famílias dependem delas. Assim a crise seria um pouco mais acautelada.
E tem faltado esse apoio às PMEs?
Bem, os dados estatísticos e algumas informações aludem a alguns apoios, porém na visibilidade concreta nós vemos que muitas PMEs fecham por falta de apoio e de suporte.
Vamos terminar com a questão do processo de vacinação. Angola ainda se debate com problemas de falta de vacinas? Onde é que existem mais atrasos?
Temos vacinas, temos tido muitas doações. Estamos a vacinar consoante as prioridades e consoante as diretrizes do próprio programa. E, para nós, é satisfatório o nível das pessoas que estão a aderir; são poucos aqueles que não estão a aderir.
Então não se pode falar, nesta altura, de falta de vacinas em Angola?
Tem havido várias doações. O processo de vacinação é que devia ser um pouco mais expandido e também um pouco mais aberto. Uma das comunidades que deveria ser tida em conta é a Igreja.
Eu digo, por exemplo, que a Cáritas, na sua presença nas comunidades, assim como outras Igrejas, são parceiros e as suas ações são bem acolhidas. Deveriam ser usadas as instalações destas instituições para rapidamente ampliar este processo de vacinação. Porque, sobretudo na capital, em alguns lugares acontecem autênticas enchentes e há pessoas que, por falta de paciência, não se vão vacinar. Por isso, dever-se-ia usar os vários espaços disponíveis para vacinar mais pessoas.
Acho que isso é uma questão de estratégia e de visão porque quantos mais lugares abertos pela extensão territorial de uma província e pelo número de habitantes, mais rápida poderia ser a imunização de muitas pessoas. Isso permitia uma prevenção muito forte.