Félix Lungu está em Portugal há mais de 20 anos. Veio da Roménia em 1995, para estudar Teologia na Universidade Católica. Acabado o curso esteve dois anos em Moçambique, a fazer voluntariado missionário. No regresso, em 2003, começou a trabalhar no gabinete português da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, e casou com uma portuguesa, com quem tem três filhos.
Em entrevista à Renascença fala do caminho da unidade que tem sido feito no seu país de origem – sobretudo depois da visita de João Paulo II, há 20 anos –, mas também dos problemas que permanecem, porque muitos dos bens confiscados à Igreja Greco-católica ainda não foram devolvidos. Acredita que ao dedicar três dias à Roménia (de 31 de maio a 2 de junho), o Papa Francisco mostra interesse por esta “periferia” da Europa, e quer agradecer a resistência dos que se mantiveram fiéis a Roma.
A Roménia já teve a visita do Papa João Paulo II, há cerca de 20 anos. Há muita diferença entre a Roménia dessa altura e a Roménia que vai receber agora o Papa Francisco?
É um país necessariamente diferente, porque na altura, há 20 anos, a Roménia tinha acabado de sair de um regime comunista de quarenta e muitos anos, onde houve uma perseguição muito violenta, sobretudo contra a Igreja Greco-católica, os católicos de rito oriental na Roménia. Depois dessa experiência traumática, há 20 anos a Roménia estava a dar os primeiros passos, a redescobrir a liberdade, a democracia, estava às portas da NATO, da União Europeia. Mas, houve alguma dificuldade na visita, porque o Papa João Paulo II ficou só em Bucareste, na capital, não conseguiu viajar nem conhecer outros locais do país, a realidade mais profunda.
Mas isso agora vai acontecer, o Papa Francisco irá a vários sítios da Roménia.
Exatamente. Por isso esta visita do Papa Francisco é, de alguma maneira, histórica. Sou suspeito ao dizer isto, por ser romeno, mas vai ser uma visita muito importante. É uma visita de três dias, é a primeira vez que o Papa Francisco dedica tanto tempo a um país europeu. Se calhar o Papa quer mesmo conhecer a realidade mais profunda, mas também porque a Roménia é uma realidade bastante complexa.
Como é que podemos resumir o quadro religioso na Roménia?
A Roménia tem cerca de 20 milhões de habitantes. Em rigor são 23, mas uns três milhões estarão pelo mundo fora, migrados. Dos 20 milhões de habitantes da Roménia, 80% são cristãos ortodoxos, os protestantes serão uns 6%, e estima-se que os cristãos católicos sejam apenas 4%.
Uma minoria…
E desta minoria, podemos fazer uma subdivisão. A Igreja Católica na Roménia tem 12 dioceses, seis de rito greco-católico, e seis de rito latino. Destas dioceses latinas, só duas são romenas, as outras quatro são de língua húngara, das minorias húngaras que vivem na Transilvânia, que o Papa Francisco vai visitar. As outras seis dioceses são greco-católicas, também a maior parte na zona da Transilvânia.
Isso tem a ver com a tradição histórica?
Sem dúvida, porque a Roménia tem uma história que começou há 2000 anos, com a conquista dos romanos, que deixaram esta influência, até na língua, que tem raiz latina, e até a religião. Mais tarde Cirilo e Metódio, os irmãos que evangelizaram o sul da Europa e os Balcãs, deixaram também uma marca. A Roménia esteve sempre nesta confluência dos impérios, esteve muito tempo sob a ocupação do Império Otomano, do Império Russo, e também do Império Austro-húngaro. Então, toda a história da Roménia é uma história de ocupação, de procura da liberdade, e é natural que haja minorias, muitas religiosas, também étnicas. E é ao encontro destas minorias que o Papa Francisco quer ir.
O programa tenta ter em conta essas diversas realidades. Vai ser uma visita ecuménica.
Sim, e num país com as características da Roménia, só podia ser ecuménica. O Papa João Paulo II foi o primeiro Papa a visitar um país de maioria ortodoxa, e já fez história. O Papa Francisco vai dar continuidade a essa visita histórica, e logo depois do encontro com as autoridades civis, vai encontrar-se com o líder da Igreja Ortodoxa, o Patriarca Daniel, e com o Sínodo da Igreja Ortodoxa. Haverá um discurso e uma visita à nova catedral da Igreja Ortodoxa em Bucareste, onde será a rezado o Pai Nosso, a mostrar a comunhão e este desejo da unidade. Faz lembrar, novamente, a visita de há 20 anos, quando o Papa João Paulo II estava a celebrar a missa, num parque da capital, e espontaneamente as pessoas começaram a gritar a palavra “unidade”. Estavam na assembleia católicos e ortodoxos, e foi algo que tocou muito João Paulo II. Oxalá que agora, com o Papa Francisco, se continuem a dar estes passos.
Mas, o convívio entre estas diversas realidades é pacífico?
Mais ou menos. Há tensões ligadas a questões históricas, porque a Igreja Greco-católica, em 1948, foi extinta, formalmente deixou de existir, por decreto do Governo.
Quando foi implantado o regime comunista?
Sim. E todos os bens da Igreja Greco-católica transitaram para a Igreja Ortodoxa. Depois destes quarenta e muitos anos é difícil repor, restabelecer alguma justiça. Estima-se que tenha havido mais de 2.500 igrejas confiscadas, e só foram devolvidas 168.
São feridas que ainda não estão fechadas?
É difícil resolver, porque durante 50 anos, enquanto a Igreja Greco-católica esteve na clandestinidade, na ilegalidade, os cristãos continuaram a frequentar a Igreja Ortodoxa, e neste momento há comunidades ortodoxas no mesmo sítio. Há, de facto, necessidade de um caminhar juntos, resolver os problemas em conjunto. Há tensões, sem dúvida, mas há também uma experiência de muitos anos de convívio, senão esta pluralidade de sensibilidades religiosas não existiria nem conviveriam juntas.
O Papa também vai visitar um Santuário mariano. Há uma grande devoção mariana no país?
Sim, há. Sábado, o Papa Francisco vai visitar o santuário de Sumuleu Ciuc. É uma cidade, um lugar de peregrinação no centro da Roménia, de alguma maneira ligado à minoria húngara. Tem uma tradição de 500 anos de peregrinações, está ligado sobretudo com as guerras de religião. Na altura do Império Austro-húngaro, o Rei da Hungria, de influência calvinista, quis obrigar os saxões – na altura uma minoria alemã que vivia na Transilvânia – a converterem-se ao protestantismo, e houve uma luta na véspera do Pentecostes, há 500 anos. Então as pessoas, para celebrar essa vitória dos católicos da Transilvânia, todos os anos no Pentecostes fazem uma grande peregrinação mariana.
O santuário tem uma imagem em talha dourada, que dizem que é uma das maiores da Europa do Leste, tem 2,27 metros, é a imagem da Nossa Senhora com o menino Jesus. Esse dia é também o Dia da minoria húngara. Portanto, o Papa Francisco vai encontrar-se com a comunidade romena ortodoxa e com a comunidade católica de forte influência húngara. Também terá um encontro com a comunidade latina em Bucareste, e também em Iasi, que é outro lugar que o Papa irá visitar na Moldávia. Por fim irá a Blaj, que é o centro histórico da Igreja Greco-católica, e aí celebrará uma missa, para ser mais correto, a Divina Liturgia, em rito bizantino, ou oriental, e serão beatificados sete bispos greco-católicos que morreram durante o comunismo, pessoas muito importantes.
Esse será um momento alto da visita.
Será. De facto, com esta visita o Papa Francisco vai prestar um tributo, reconhecer que a Igreja Greco-católica pagou um preço muito alto pela sua fidelidade a Roma.
Aqui em Portugal pode parecer estranho, não estamos habituados a lidar com estes nomes e com estas realidades, mas a história da Igreja Greco-católica começou há 300 anos, em 1700, quando vários bispos e sacerdotes aceitaram a fidelidade ao Papa e à fé católica. Desde então há uma tensão entre a latinidade e o mundo eslavo, porque os eslavos, a Igreja Ortodoxa, e também os regimes comunistas, acharam muito estranho uma parte da Igreja Ortodoxa ter fidelidade ao Papa.
Nós aqui – temos essa liberdade, e ainda bem –, às vezes de forma estranha não valorizamos a figura do Papa como Vigário de Cristo, e até o criticamos, pomos em causa algumas coisas que tenha dito ou feito, mas olhando para o exemplo destas pessoas que foram perseguidas e preferiram morrer… Estes sete bispos morreram todos – seis na prisão, um sétimo em prisão domiciliária, em casa – só por fidelidade ao Papa e a Roma. Acho que o Papa Francisco vai prestar essa homenagem, reconhecer o valor deste sacrifício.
A Igreja Greco-católica esteve sempre ligada às correntes literárias e culturais da identidade da Roménia. Um destes bispos, Iuliu Hossu, o último que morreu, foi a pessoa que leu a declaração da unidade, em 1918, quando a Transilvânia se voltou a unir à Roménia, e deu início à história da Roménia moderna. Ou seja, foi uma pessoa importante, e depois os comunistas puseram-no na prisão só por fidelidade ao Papa, e mataram-no. Há, de facto, páginas da história muito densas, pesadas, tristes, mas que ao mesmo tempo refletem uma luz fantástica, porque este testemunho é inspirador.
Na prática o que é que esta visita poderá significar de mudança para a Roménia, e para os católicos em particular?
Para os católicos penso que é um sinal de predileção, e também de conforto. O Papa Francisco vai visitar esse pequeno rebanho, porque, de facto, acaba por ser uma pequena minoria, fiel à sua forma de estar. O Papa quer visitar esta fronteira... Ele fala muito das periferias, e a Roménia é uma espécie de periferia, embora esteja na Europa, na União Europeia. Mas, é uma comunidade pequenina, aliás são várias comunidades, e ele quer conhecê-las, dar um sinal de comunhão, reconhecer o sacrifício da Igreja Greco-católica e agradecer-lhe tudo aquilo que fez para manter essa fidelidade.
A grande mensagem é a de recuperar o legado do Papa João Paulo II, a unidade. E desafiar a Igreja, todos juntos. O próprio lema da viagem é “caminhamos juntos”, ou seja, caminhamos em conjunto, não é cada um por si, mas todos juntos, caminhar, peregrinar. É um convite à unidade. Portanto, é um ecumenismo ao mais alto nível, sem dúvida, a um nível diplomático, nos encontros com oficiais e representantes das várias confissões religiosas, mas também é um sinal para o povo, para as pessoas comuns, de que o caminho é por aí, é o caminho da unidade e da comunhão.