Foi por ser negro. Foi por ter um cão. Foi por ser negro e ter um cão. Foi pura maldade ou maldade racista. A maldade racista é apenas mais estúpida, mas tão cruel e má como a maldade em geral. O assassino jura que não é racista. Pouco importa. Os insultos eram. Mas a verdade é que depende da rua onde estamos. Podemos ouvir “preto de m…ou branco de m….”. Depende da cor de quem o diz e da zona onde estamos. Portugal é racista? É. Mas não é um racismo a preto e branco. O pior tem a ver com a morenagem.
A ideia de um país racista não cola muito com Portugal. A ideia de um país não racista também não. Um país estruturalmente racista será do tipo Africa do Sul antes da vitória de Mandela, mas a verdade é que não sei se ali são mais ou menos racistas que os vizinhos da fronteira do bairro negro da Cova da Moura.
Como na fronteira entre a Roménia e a Hungria, onde, provavelmente, são mais racistas do que nas fronteiras da Alta de Lisboa, para os lados da Ameixoeira ou do Alto dos Moinhos, onde também há um bairro de morenos que chamam nomes racistas aos vizinhos de várias cores, que respondem com murmúrios racistas aos vários tons de morenos. A verdade é que, por aí, os ainda mais morenos são vistos também de lado nos dois lados das fronteiras.
Quando era miúda, no recreio, não havia uma única negra. Mas o pior dos insultos entre as caucasianas de olhos negros ou azuis era : “Má, feia, preta, carocha!”, assim mesmo, ditos numa sequência de raiva que acabava num “ ca-ro-cha”… arrastado . "Carocha" é que era o verdadeiro insulto, e também era o modelo de um carro popular. Quando alguém devia ficar envergonhada com alguma coisa que passava dos limites da estupidez aconselhava-se o suposto pateta “ a pintar a cara de preto”. Era mais lógico que fosse verde. Cara de sapo. Mas não, era mesmo preto.
Ninguém dizia aquela lengalenga, ou defendia aqueles pinturas faciais, a pensar em meninas negras nem a pensar em coisa nenhuma de teor racista. Mas, lá em casa, já nessa altura, como não se podia dizer nenhum tipo de palavrões nem frases idiotas que separassem a grande família dos filhos de Deus pela coloração das suas faces, as frases eram proibidas. Eram vistas ao nível de quem se propunha insultar a mãezinha de alguém.
Nesse tempo, quando o senhor Chico chegava de Moçambique com serviços de loiça chinesa e cachos de bananas para pagar o envio diário da “Bola” para um primo que vivia na então Lourenço Marques, anunciava-se a ele mesmo, logo no fundo da escada, aos berros, clamando alto e bom som: "Chegou o Chico preto das bananas”. Para dentro era preciso traduzir: "Está à porta o senhor Chico que vem trazer uma encomenda do pai da Lilly". Penso que o Senhor Chico se revia melhor na imagem do preto das bananas e não achava que isso do “Chico preto” fosse insulto nenhum.
Sábado, em Moscavide, um velho branco de 80 anos decidiu cravejar um jovem negro com uma série de quatro tiros, disparados sequencialmente em várias partes vitais. Foi buscar a arma a casa para cometer o crime, em plena rua, à luz do dia, para colocar quatro pontos finais numa discussão iniciada dois dias antes. O crime deve ter sido pensado, ao pormenor, durante as 48 horas levadas a ruminar a fúria. O assassinado era um actor conhecido. Para cúmulo, em recuperação de um atropelamento sofrido há dois anos. Mas estes dados não foram tidos em conta.
O povo dirá que a vitima tinha o destino marcado. Havia de morrer novo. Fosse debaixo de um camião ou às mãos de um bandido que o insultara e ameaçara de morte por causa de uma discussão banal por motivo de uma cadela. Quem mata outro homem por causa de uma cadela? Há gente assim. Tresloucada, capaz de dar quatro tiros e matar o pai de três crianças por uma coisa tão trivial como a discussão por causa das ações irracionais de um pobre cão.
Família e vizinhos dizem que os insultos eram repetidos e racistas, mas o criminoso não nega o ódio, nega só o racismo. Se calhar não o matou mesmo por ser negro e os insultos equivaliam ao “mau, feio, preto, carocho” do final dos anos 60. Sem intenção de ofender. Se o crime fosse racista o assassino orgulhar-se-ia de ter morto um negro. A estupidez do racismo caracteriza-se pelo orgulho em ser estúpido. Os racistas raramente se escondem. Gostam de exibir-se.
Este velho homem orgulhou-se apenas de ter morto o dono de uma cadela que o incomodava (vá-se lá saber porquê?). É muita raiva junta. É muita violência junta. É muita desumanidade. É muita parvoíce. É muito mal em estado puro. É sintoma de uma doença muito grave e bem pior do que a Covid.
Quem deixa as armas à solta nestas mãos? Há-de haver um responsável por esta loucura. Os idosos não são inimputáveis. Deste não se sabe nada. Dá só para imaginar que fez parte da geração da guerra. Que talvez tenha visto no pacífico ator Bruno Candé Marques um regresso de um “turra” (que era por definição o inimigo e um guerrilheiro assustador e a abater). Talvez a arma lhe tenha ficado desses tempos de ódio irracional. Se assim for o crime é racista e é de um ódio fininho, enrolado como uma serpente que foi crescendo, crescendo e tomou conta de um cérebro inteiro até o fazer explodir de raiva, aos 80 anos, por causa de um cão. Em pleno dia, numa rua de Moscavide com quatro tiros que em vez de raiva provavelmente foram gerados num ataque de medo puro. Recalcado pelo stress pós-traumático de uma guerra que nos afetou a todos e que varremos para debaixo do tapete como se não tivesse existido.
Valia a pena investigar a história. Assumir o resto e o rasto de uma guerra que aconteceu mesmo. Ter a coragem de falar dela. E dos seus mitos. Não para perdermos o sono e nos flagelarmos porque somos todos uns racistas recalcados. Apenas para nos depararmos com o facto de que há racistas de todas as cores e de todos os tempos. E há racistas num crescendo e entre nós.
Sem nos agarrarmos a mitos que continuam a permitir que as velhas serpentes acabem por sair pelos olhos dos velhos levados a matar a tiro os seus próprios pesadelos. Sejam eles brancos, morenos ou negros. Enganam-se os que pensam que esta é uma questão simples, dessas que se resolvem a preto e branco. Não é.