E depois de Mossul?
- Curdistão Iraquiano. Um novo país no horizonte?
- Iraque, Curdistão e as "zonas disputadas". Um conflito à espera de acontecer?
- Cristãos do Iraque entre a espada curda e a parede árabe
“Tão morta, tão silenciosa, tão destruída”. São estas a palavras que Hala Jaber, antiga jornalista do “The Sunday Times”, consegue encontrar para descrever a cidade que durante nove meses foi palco de um dos conflitos militares mais violentos desde a II Guerra Mundial.
“Estive esta manhã [segunda-feira] numa zona que parecia ter sido em tempos uma zona muito bela da cidade, com restaurantes, cafés e até um parque de diversões. Só havia silêncio. Todas as lojas foram destruídas e nas ruas há grandes crateras devido aos bombardeamentos”, descreve a actual assessora da Organização Internacional para as Migrações (OIM), ao telefone com a Renascença a partir de Mossul.
O parque de diversões, localizado numa pequena ilha no meio do Rio Tigre que rasga a cidade a meio, foi aparentemente usado durante a era do Estado Islâmico como um campo de treino para os militares do califado. É, para Hala, a metáfora perfeita para tudo o que os habitantes de Mossul tiveram de enfrentar durante os anos de ocupação. “Dá-te uma visão geral do que se passou em Mossul. Tudo o que costumava representar um dia de lazer ou algo de bom para as pessoas foi literalmente destruído.”
Nas ruas, as histórias de quem perdeu tudo aparecem ao virar da esquina. Quase todos perderam algo na cidade que viu o Estado Islâmico nascer. “Vimos hoje, por exemplo, uma mulher que tentava obter permissão para atravessar a ponte que liga as duas partes da cidade [e ir para Mossul Ocidental]. A casa dela era lá e vários familiares ficaram para trás. Queria ir lá para trazer os corpos e enterrá-los”, conta Hala.
Às organizações humanitárias chegam relatos de quem teve de manter os corpos dos seus entes queridos dentro das casas por temerem ser atingidos quer pelas balas do Estado Islâmico quer pelas bombas da coligação liderada pelo governo iraquiano. Ao cenário de destruição e ao cheiro a corpos putrefactos juntam-se agora o calor a rondar os 45ºC, a falta de água potável e de alimentos, mas também a incerteza do que será Mossul a partir de agora.
“As pessoas estão cansadas e traumatizadas”, relata a ex-repórter, de 66 anos, que, apesar de não encontrar pessimismo nos que tentam agora refazer as suas vidas, ouve as suas dúvidas e preocupações: “Quando vives num ambiente como aquele durante tantos anos continuas com um conjunto de preocupações na tua cabeça. Será que acabou mesmo? Eles vão voltar? Estamos seguros? Seremos capazes de voltar para casa? Podemos começar as nossas vidas?”.
A visita do primeiro-ministro, Haider al-Abadi, e o anúncio, “ao mundo inteiro”, do “fracasso e colapso do estado terrorista fictício do Daesh [Estado Islâmico], que esteve em Mossul durante três anos”, é sinal daquilo que Hala chama de uma “vitória moral”.
“Reconquistar o território já é um grande passo”, defende a ex-jornalista, que tem visto a população festejar a derrota dos terroristas. “Jubilam com a vitória. Ainda que tenham perdido tanto no reino de terror em que viveram durante quatro anos. Pelo menos agora podem começar a planear as suas vidas”, acredita.
Regressos e vingança
Com o conflito armado na cidade em vias de estar terminado (as fontes contactadas pela Renascença ainda falam de trocas de tiros em algumas partes da cidade e algumas organizações internacionais ainda não conseguiram entrar em Mossul Ocidental), a preocupação vai agora para a crise humanitária que se vive na cidade do Norte do Iraque.
Com 920 mil pessoas desalojadas desde o início da campanha militar para libertar Mossul, estima-se que sejam milhares aqueles que tentarão regressar em breve à cidade em que nasceram, depois de meses passados nos campos de desalojados montados por todo o país.
“Das pessoas com quem falei nos campos, [uma grande maioria] quer voltar no imediato”, conta à Renascença Melany Markham, assessora do Conselho para os Refugiados Norueguês no Iraque.
Há, ainda assim, aqueles que não vêem razão para voltar. “Dizem-me que não voltam enquanto não houver algo para onde voltar. E isso é absolutamente compreensível. Os edifícios foram arrasados, não há sistema de água, algumas das escolas têm bombas por explodir e minas por desarmadilhar”, enumera a assessora.
Às marcas físicas provocadas pelo conflito armado, somam-se agora as divisões que a actuação do Estado Islâmico acentuou, numa sociedade já por si dividia em curdos, árabes, cristãos e yazidis.
E depois de Mossul?
- Curdistão Iraquiano. Um novo país no horizonte?
- Iraque, Curdistão e as "zonas disputadas". Um conflito à espera de acontecer?
- Cristãos do Iraque entre a espada curda e a parede árabe
Aos ouvidos do Conselho para os Refugiados Norueguês chegam as histórias de violência daqueles que querem vingar com as próprias mãos as atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico. “Ouvimos falar de acções de vingança contra famílias que tinham um membro do Estado Islâmico na sua família. Em especial, crianças cujo o pai é ou era membro do Estado Islâmico. As crianças não têm culpa que os pais estejam envolvidos nos conflitos. De um lado e de outro”, denuncia Markham, que pede às forças de segurança iraquianas que providenciem os meios necessários para manter a segurança de todos e impeça que os actos de violência continuem.
“Os combates podem ter acabado, mas a crise humanitária não”, disse à Reuters a coordenadora para o trabalho humanitário da ONU no Iraque, Lise Grande. Essa é também a principal preocupação da assessora da OIM. “Há outra crise a começar”, defende, lembrando a comunidade internacional que ainda há muito trabalho pela frente para reconstruir Mossul.
"Uma determinação incrível"
Mais do que reconstruir com tijolo e cimento, Markham fala de uma herança histórica que é preciso salvar, numa cidade onde as bibliotecas foram pilhadas e os livros queimados e onde uma das primeiras universidades no Médio Oriente ficou parcialmente destruída.
“Mossul era também uma cidade universitária. Ter praticamente metade dessa cidade destruída é também destruir uma parte muito importante da herança iraquiana”, acredita a assessora do Conselho para os Refugiados Norueguês. “Espero que essa herança não esteja para sempre perdida...”
“Os estudantes universitários que estavam prestes a graduar-se tiveram que ficar em casa porque tinham medo de sair para terminar os seus estudos”, relata a funcionária da Organização Internacional para as Migrações, que acredita que em breve a cidade poderá retomar as rotinas que faziam de Mossul uma das cidades mais prósperas do Iraque.
Há, ainda assim, e no meio do rasto de destruição deixado pelo grupo terrorista, quem tenha posto mãos à obra. Nas ruas de Mossul Oriental que foram reconquistadas nos últimos três meses já há vida a fervilhar. “Encontras lojas a reabrir, pequenos restaurantes a aparecer, mercados, pequenas lojas, mas também lojas mais caras. As pessoas estão a voltar para as ruas que não estão tão danificadas. Vês vida a nascer lá muito rápido”, relata a ex-jornalista Hala Jaber, que encontra no povo iraquiano um fenómeno inspirador de resiliência.
Para Markham, a palavra resiliência não chega: “Acho que é mais uma determinação incrível”.