"No próximo apocalipse já não me apanham aqui, vou para Sagres"
07-04-2020 - 08:20
 • Lazar Divjak*

O primeiro caso de infeção pelo novo coronavírus na Sérvia foi confirmado a 5 de março. Um mês depois, um residente de Belgrado, a capital, escreve um postal à Renascença a relatar como se está a viver a pandemia de Covid-19 no país.

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Dentro de poucos meses faço 40 anos. Ao longo desse tempo Belgrado já assistiu a três estados se emergência e um de guerra. A maioria foram causados por eventos locais: em 2014 tivemos cheias catastróficas; em 2003 o primeiro-ministro foi assassinado e em 1999 tivemos de suportar quase três meses de bombardeamentos da NATO, que puseram fim ao conflito no Kosovo. Desta vez, porém, fazemos finalmente parte do mundo: a pandemia é global. Um facto engraçado é que todos estes eventos aconteceram, ou começaram, em março.

Creio, contudo, que o verdadeiro problema nestas partes não é o vírus. Claro que é uma coisa séria, mas a maior ameaça vem da resposta dos nossos líderes. Na sua primeira conferência de imprensa sobre este assunto o Presidente Vucic (que à imagem de Orban na vizinha Hungria controla completamente o país) riu-se da ameaça. Riu-se mesmo, a sério. O seu principal epidemiologista descreveu a covid-19 como “o vírus mais ridículo de sempre” e encorajou as pessoas a irem fazer compras a Itália.

Isso foi no final de fevereiro. No dia 15 de março impuseram o estado de emergência. Toda a gente com mais de 65 anos foi proibida de sair de casa, juntamente com várias outras restrições. Coisa ridícula, este virus. O Presidente passou a dirigir-se ao país de dois em dois dias, evidenciando mudanças radicais de humor, congratulando-se pelo seu sucesso pessoal em adquirir equipamento médico, suplicando com as pessoas para serem disciplinadas e manterem as distâncias e depois, desvairado, listando as punições para todos os que o desobedecessem e avisando que vão morrer dezenas de milhares e que os cemitérios não vão ter capacidade para acolher tantos cadáveres (a população da Sérvia não chega aos 7 milhões e a proporção de idosos é menor do que em Itália).

Agora impuseram um recolher obrigatório e ninguém pode estar na rua depois das 17h (15h aos fins de semana), os parques foram totalmente encerrados. Donos de cães, como é o meu caso, foram até proibidos de os levar à rua, por decisão pessoal do Presidente. Quem for apanhado na rua fica com cadastro. No final de março Vucic anunciou que vinha aí um “lockdown” de 24 horas, quando lhe perguntaram como é que as pessoas poderiam fazer para comprar comida e medicamentos respondeu que não poderiam. Escusado será dizer que isso conduziu a um estado de pânico generalizado, e longas filas à porta dos supermercados, com as pessoas a açambarcar, em preparação para o que vier. Há dias uma das minhas colegas disse, em tom sombrio, “enquanto tivermos água e eletricidade…”. Ela é uma refugiada da Croácia, do início dos anos 90. Deve saber do que fala.

Notam-se semelhanças assustadoras entre este período e o de 1999. Tal como na altura, com a guerra e os bombardeamentos, agora só se fala do vírus. Há um sentimento de impotência total, esperando só que a coisa passe e que vivamos para contar aos nossos descendentes. Mas na altura havia um inimigo e havia uma saída, um mundo para lá da loucura, à nossa espera. Agora o inimigo está em toda a parte e não é ninguém, mas a loucura é global. Temo pela minha própria sanidade cada vez que me lembro que a maioria dos peritos em epidemiologia são nomeados por serem próximos do partido de Vucic.

Esta situação resulta de uma desconfiança mútua. As pessoas não acreditam nas autoridades, e na sua capacidade de dar conta do recado, e o Estado não acredita que as pessoas se comportem e mantenham as distâncias sociais, daí proibirem tudo a todos. O vírus é apenas um catalisador, aqui como em todo o lado, suponho eu. Viver num país funcional é um luxo, não é? Por isso é que passo muito tempo a ler sobre como outras sociedades estão a lidar com a crise.

Sempre tive uma ligação especial a Portugal. Já perdi a conta às vezes que visitei esse belo país. Todas as noites, como se fosse um ritual, vou ver as estatísticas sobre os novos casos, mortes e recuperações por aí. Tudo o que desejo é poder regressar a Sagres com a minha mulher e o nosso filho de dois anos e meio, e assentar arraiais na praia do Amado (sim, eu sei que tecnicamente pertence a Aljezur) e ver com ele o pôr do sol.

Aliás – e disso faço questão – no próximo apocalipse é aí que me vão encontrar, e não aqui.


*Lazar Divjak vive em Belgrado. Casado e pai de um filho, trabalha para a missão da OSCE na Sérvia. É autor do livro “Roll intro Tape”, publicado em sérvio em 2016, sobre música.