A eutanásia não é analgésico
17-02-2017 - 08:04

Nos EUA, a cultura anti-dor levou à comercialização em larga escala de um analgésico fortíssimo, o Oxycontin. Um medicamento que devia ser usado apenas em casos extremos passou a ser usado no dia-a-dia.

É um das tragédias invisíveis do nosso tempo: a epidemia de droga que mata 50 mil americanos por ano. Quando falou em “carnificina americana”, Trump tinha em mente esta epidemia opiácea que varre grande parte da América. Mas como é que começou este apocalipse químico? Na paranóia anti-dor. Se somos viciados no prazer físico, também somos viciados na ausência de qualquer dor física. Nos EUA, esta cultura anti-dor levou à comercialização em larga escala de um analgésico fortíssimo, o Oxycontin. Um medicamento que devia ser usado apenas em casos extremos passou a ser usado no dia-a-dia. Um jovem que joga futebol americano tem dor de costas? Oxycontin. A mamã está com uma terrível dor de dentes? Oxycontin. Quando as autoridades proibiram esta banalização do Oxycontin, o mal já estava feito: centenas de milhares de pessoas já eram opiómanas e, na ausência do medicamento, entraram no consumo de heroína pura e simples como qualquer viciado de rua.

Este é o resultado trágico de uma sociedade formatada para não sofrer. Nós não jogamos futebol americano como o jovenzinho agarrado ao Oxycontin, mas a verdade é que também temos o gatilho rápido na hora de consumir mezinhas químicas para travar qualquer tipo de dor.

Até a mais insignificante das dores passou a ser insuportável. Esta fragilidade acaba por criar um cenário grotesco, quase cómico: a civilização ocidental é a mais avançada da história e nela vive a população mais medicada da história da humanidade; todavia esta é a população que tem medo do frio no inverno e do calor no verão, esta é a população que entra em histeria apocalíptica sempre que há um pequeno surto de gripe. Mas não haverá aqui elementos positivos? Não haverá aqui progresso? Claro que sim. Não me confundam com os fanáticos anti-vacinas e anti-farmacêuticas. Há cem anos os meus bisavós e trisavós morreram cedo com doenças que entretanto foram erradicadas pelo progresso médico. Contudo, é inegável que esta cultura criou uma psique colectiva que não sabe o que fazer à dor.

Criámos um casulo artificial, 100% humano que nos eleva acima da dor física e psíquica. Sim, psíquica. A tristeza e o luto, por exemplo, já são vistos como doenças pela psiquiatria. É como se a tristeza não fizesse parte das nossas vidas, é como se o sofrimento não fizesse parte da nossa educação moral, é como se o ego humano tivesse chegado a um ponto em que considera aceitável e possível autonomizar-se por complexo em relação à natureza.

Problema? O escudo analgésico tem limites. Ícaro paira por aqui. Quando se chega a um idade avançada e a doenças mais complicadas, não há escudo protector que nos valha.

A medicina só pode minorar o sofrimento, não o pode anular por completo. Mas, como é óbvio, uma pessoa que viveu a juventude e a maturidade num vácuo anti-dor está desarmada ao nível mental para lidar com a dor na velhice; em consequência, entra de forma muito óbvia no campo da eutanásia. Portanto, antes mesmo de qualquer debate moral, importa dizer que a eutanásia é sobretudo um absurdo lógico: mata-se a pessoa para se matar a dor; transforma-se a morte num mero analgésico.