O Papa Francisco visita o Iraque contra todas as recomendações e expetativas e só a sua insistência pessoal explica que esta viagem apostólica não tenha sido cancelada, por entre ameaças terroristas e uma pandemia que tem atingido o país de forma severa. À sua espera vai estar uma minoria de cristãos, com um historial de perseguições sangrentas.
O próprio Papa explicou na quarta-feira que não quis deixar os cristãos do Iraque mais tempo à espera da sua visita. Uma primeira visita papal tinha sido anunciada em 1999, mas foi cancelada quando as negociações entre Roma e Bagdad, na altura dominada por Saddam Hussein, redundaram em falhanço. Francisco não quis sujeitar os seus fiéis a mais um desapontamento e assim, na sexta-feira, aterrará em Bagdad para uma viagem de quatro dias.
Os encontros com os cristãos serão o ponto alto desta viagem apostólica e servirão para dar palco a uma comunidade que tem sido duramente perseguida ao longo das últimas duas décadas.
As estimativas variam, mas calcula-se que nos últimos anos do regime de Saddam Hussein houvesse pouco menos de dois milhões de cristãos no Iraque. Havia, inclusivamente, cristãos influentes no poder, como Tarik Aziz, um dos homens mais leais a Saddam. No geral, contudo, os cristãos evitavam misturar-se na política.
O regime podia ser sanguinário, mas os cristãos não eram perseguidos e a queda do Governo de Saddam foi um desastre para a comunidade que se viu apanhada no fogo cruzado numa guerra civil entre sunitas e xiitas que destroçou o país. Muitos cristãos, sobretudo nas principais cidades, tinham dinheiro e sem uma rede de segurança tornaram-se alvos fáceis para raptos e pedidos de resgate com que se financiavam as milícias. O êxodo foi inevitável.
“Restam uns 10%, entre 200 e 300 mil. A este ritmo não estamos longe do tempo em que os cristãos desaparecem do Iraque, pode acontecer na minha vida. É assustador”, explica Metin Rhawi, responsável pelas relações externas da União Siríaca Europeia, um grupo político que representa os interesses da comunidade cristã na região do Iraque, Síria e Turquia. Estes cristãos identificam-se como caldeus, siríacos ou assírios, mas todos se reconhecem como membros da mesma etnia.
Destas poucas centenas de milhares a maioria pertence à Igreja Católica Caldeia, uma igreja católica de rito oriental que vai buscar o seu nome à antiga caldeia, referida na Bíblia como local de que era originário Abraão, e que fica no que é hoje o Iraque. Os caldeus têm o seu próprio patriarca, Louis Sako, que é cardeal e que tem sido um defensor incansável da paz no Iraque, criticando sempre os cristãos que pegam em armas ou que sugerem a criação de um território autónomo na Planície de Nínive, território ancestral deste povo e onde ainda vivem grandes concentrações de cristãos.
Mas os caldeus não são os únicos católicos no Iraque. Para além de uma pequena comunidade de católicos de rito latino, há ainda a Igreja Siríaca Católica que conta com algumas dezenas de milhares de membros. Esta igreja é liderada pelo patriarca Inácio José III. Um dos piores atentados contra os cristãos no Iraque, antes da ocupação de Mossul pelo Estado Islâmico em 2014, foi contra uma Igreja Siríaca Católica em Bagdad que fez 58 mortos e perto de 80 feridos.
Por fim, há no Iraque algumas comunidades arménias, incluindo católicos. Os arménios, como o próprio nome indica, são de uma etnia diferente da maioria dos cristãos no Iraque e mantêm estreitas ligações com o seu património ancestral e cultural na Arménia.
Mas as divisões não terminam aqui. Para além de católicos há muitos cristãos no Iraque que são de igrejas ortodoxas. Destes muitos pertencem à Igreja Siríaca Ortodoxa. Antigamente havia apenas uma Igreja Siríaca, mas esta foi-se dividindo. A primeira cisão deu-se quando uma fação se separou para se unir ao Catolicismo, dando origem à Igreja Caldeia e, mais tarde, uma nova cisão deu origem à Igreja Siríaca Católica. Caldeus e siríacos, católicos ou ortodoxos, partilham assim a mesma tradição litúrgica e espiritual e as relações ecuménicas, especialmente entre siríacos católicos e ortodoxos, são excelentes na atualidade.
Outra cisão na tradição siríaca deu origem à Igreja Assíria do Oriente (IAO), que tem também muitos fiéis no Iraque e tem ainda a particularidade de ser a única Igreja cristã apostólica no mundo que não se encontra em comunhão com qualquer outra. Este isolamento teve um custo alto para a Igreja, que acabou por ser mais duramente perseguida que qualquer outra confissão cristã no país, ao ponto de a sua liderança ter passado toda para o exilio, em Chicago, no início do Século XX. Ainda outra cisão, agora dentro da IAO, levou à criação da Antiga Igreja do Oriente, em 1964.
Há, por fim, algumas comunidades protestantes.
Divisões que “magoam”
As divisões entre os cristãos não são apenas litúrgicas. Os siríacos, tanto católicos como ortodoxos, tendem a defender a criação de uma zona autónoma para cristãos na Planície de Nínive e os membros das igrejas assírias tendem mais para o nacionalismo. Já os caldeus, sobretudo entre a hierarquia, evitam esses temas e vincam a importância da unidade do Iraque, do qual os cristãos possam ser uma parte integrada. Fora do espetro eclesial há ainda uma grande variedade de grupos políticos, muitas vezes rivais, que representam as comunidades cristãs.
Metin Rhawi diz que a recente perseguição às mãos do Estado Islâmico serviu para criar mais pontes, mas que ainda falta muito caminho. “Parece que se acordou deste estranho sonho de que somos diferentes impérios a conviver no terreno, quando na verdade estamos em estado crítico no terreno, perto de morrer. Mas apesar disso os líderes das igrejas não estão preocupados em encontrar uma narrativa comum. Deviam colaborar muito mais. São todos cristãos e sabemos que têm as mesmas raízes, são o mesmo povo, ninguém duvida que são a mesma comunidade, mas estão divididos quanto às igrejas, entre diferentes confissões católicas e ortodoxas.”
“Olhando mais para os líderes políticos, vejo que estão a esforçar-se, mas os que têm mais poder, com lugares no Parlamento em Bagdade acham que são suficientemente grandes para rejeitar tudo o que não seja do seu interesse imediato. Não estão a pensar coletivamente, como comunidade, mas como partidos e por isso continuamos divididos, infelizmente. É difícil dizê-lo, magoa, mas é a realidade”, diz o representante da União Siríaca Europeia.
Reconstrução, precisa-se
Geograficamente, há uma grande comunidade cristã em Bagdad, mas a maioria dos cristãos encontram-se na região da Planície de Nínive, onde há cidades, vilas e aldeias inteiramente cristãs. A principal cidade da região, Mossul, tinha uma grande comunidade cristã até ser conquistada pelo Estado Islâmico, levando à fuga de quase todos os cristãos, muitos dos quais se refugiaram em Erbil, no Curdistão Iraquiano.
Depois da libertação de Mossul, contudo, um novo conflito entre o Curdistão e o Governo central do Iraque, por causa das tentativas de declaração de independência daquele território, afetou a Planície de Nínive, que fica precisamente na fronteira entre as regiões e era reivindicada por ambas as partes.
Os conflitos recorrentes destruíram muitas das casas e terrenos dos cristãos na região e ao longo dos últimos anos tem sido feito um esforço para reconstruir, possibilitando assim aos cristãos sair de campos de refugiados no Curdistão e noutras partes e poder regressar a casa, evitando a necessidade de emigrar.
“Esperamos que esta visita nos traga garantias para resolver muitos problemas relacionados com a existência dos cristãos na Planície de Nínive e para pressionar o governo iraquiano a tratar este problema de forma séria, e não apenas com palavras”, diz o padre Thabet Habeb Yousef.
“Esperamos ainda que a comunidade internacional e as igrejas de todo o mundo possam voltar para ajudar os cristãos do Iraque. Começámos um grande processo na Planície de Nínive, mas muitas ONGs pararam as suas atividades e espero que esta visita empurre este processo nos ajude a terminar a reconstrução da planície de Nínive e de reconstruir também Mossul, porque ainda hoje não existe qualquer movimentação de reconstrução das Igrejas em Mossul”, lamenta.
Uma das cidades mais importantes para os cristãos na zona é Qaraqosh, a maior cidade inteiramente cristã do Iraque, que será visitada pelo Papa no domingo, para um momento de oração com a comunidade local.