Não demorou muito até Donald Trump ser acusado de ser um traidor logo a seguir à cimeira com Vladimir Putin em Helsínquia, naquele que foi o primeiro encontro oficial entre os dois Presidentes desde a chegada do empresário norte-americano à Casa Branca em janeiro de 2017.
Por entre o coro de indignação que explodiu nas redes sociais logo após a reunião de segunda-feira, surgiram vozes de destaque como a de John Brennan, ex-diretor da CIA, a apontarem o dedo ao 45.º Presidente dos Estados Unidos por alinhar com o líder de uma nação rival em detrimento das agências secretas do seu próprio país, o que na ótica de Brennan e de outros pode corresponder a um crime de traição à pátria.
Em causa está o facto de Trump se ter esquivado às perguntas diretas dos jornalistas sobre se aceita as conclusões das agências de informação do seu país, que apuraram que a Rússia se imiscuiu na corrida presidencial de 2016 que culminou na sua vitória.
"Tenho grande confiança no meu pessoal das secretas, mas posso dizer-vos que o Presidente Putin fez um desmentido extremamente forte e poderoso hoje", respondeu o líder dos EUA em conferência de imprensa, depois de duas horas reunido a sós com o homólogo russo.
"Não vejo qualquer razão para ter sido a Rússia a infiltrar-se nas eleições", acrescentou, antes de declarar que as investigações em curso nos EUA a essa ingerência - que, no final da semana passada, levaram 12 espiões russos a serem indiciados por acesso ilegal aos computadores do Partido Democrata - são "um desastre" para os EUA.
Traição à pátria: sim ou não?
Contactado pela Renascença, Samuel R. Gross, professor na Faculdade de Direito da Universidade do Michigan, defende que, apesar de tudo, estas declarações concretas não correspondem ao crime de traição. "Por mais deploráveis que sejam, não penso que os comentários de Trump se aproximem de um caso de traição à pátria que possa realmente chegar a tribunal."
O especialista em assuntos constitucionais remete para o artigo 3.º da Constituição dos EUA, que define que atraiçoar o país "consiste apenas em fazer guerra [contra os EUA], apoiar os seus inimigos, auxiliá-los e incentivá-los".
"Não creio que o que Trump disse na conferência de imprensa em Helsínquia se eleve ao estatuto de 'auxiliar e incentivar um inimigo'", afirma Gross, antes de rematar que "continua a ser difícil acreditar nas coisas destrutivas que [o Presidente] faz" apesar de já estar no poder há mais de um ano e meio.
Laurence Tribe, da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, não partilha inteiramente da opinião de Gross.
Para o professor de Direito Constitucional, existem detalhes que devem ser considerados na hora de perceber se o Presidente norte-americano abriu uma frente de guerra judicial por traição quando optou por dar razão a Putin e não às autoridades federais do país que dirige e representa.
"Se a definição de guerra inclui a de ciberguerra - por exemplo, aceder ilegal e deliberadamente a infraestruturas cibernéticas eleitorais de uma nação - então aquilo a que assistimos em Helsínquia foi o Presidente Trump a auxiliar e a incentivar abertamente a guerra que o Exército russo tem em curso contra a América, em vez de proteger [os norte-americanos] da ciberinvasão liderada por Putin", defende o constitucionalista.
Neste ponto, merece consulta não apenas a Constituição dos EUA mas também a secção 18 do Código Penal dos EUA, em particular a alínea 2381, onde se define que "qualquer pessoa que deva lealdade aos EUA e que imponha guerra aos EUA ou que apoie os seus inimigos, fornecendo-lhes ajuda dentro ou fora dos EUA, é culpado de traição e deve ser condenado à morte ou a uma pena de prisão não inferior a cinco anos e a uma multa não inferior a 10 mil dólares", bem como a nunca mais ser "eleito para um cargo público nos EUA".
É no contexto do Código Penal que Tribe assenta o seu argumento: o de que, à luz do que é acima descrito, pode considerar-se que Trump cometeu um crime de traição.
"Alguns académicos podem argumentar que a definição moderna não poderia ter sido contemplada pelos autores da Constituição e outros podem insistir que se deve limitar a definição [de crime de traição] a situações que envolvem um estado de guerra declarada formalmente, mas opiniões como a de Brennan [ex-diretor da CIA] estão longe de ser descabidas", defende o advogado norte-americano.
Congresso em suspenso
As críticas a Trump não pararam com a sua tentativa de esclarecimento, quando na terça-feira tentou explicar que queria ter usado uma "dupla negativa" quando falou aos jornalistas ao lado de Putin. E essas críticas não vêm apenas da oposição democrata.
Veja-se, por exemplo, o caso de John McCain, rival de Barack Obama nas eleições de 2008 e uma das vozes mais críticas da atual presidência dentro do Partido Republicano.
McCain, como outros membros do partido no poder, foi duro na sua condenação a Trump, da mesma forma que o foi Paul Ryan, líder da maioria republicana na Câmara dos Representantes.
"Não há dúvidas de que a Rússia interferiu nas nossas eleições e que continua a tentar minar a democracia aqui e no resto do mundo", sublinhou Ryan na câmara baixa do Congresso. "O Presidente deve reconhecer que a Rússia não é nossa aliada. Não há equivalência moral entre os EUA e a Rússia, que continua a ser hostil aos nossos valores e ideais mais básicos. Os EUA devem concentrar-se em responsabilizar a Rússia e em pôr fim a estes vis ataques à nossa democracia."
No seguimento destas declarações, Ryan e McCain admitiram ambos a possibilidade de o Congresso aprovar novas sanções contra Moscovo como forma de aumentar a pressão sobre a presidência russa.
Contudo, e segundo uma sondagem da Reuters/ Ipsos divulgada na terça-feira à noite, uma maioria considerável do partido que apoiou a candidatura de Trump continua ao seu lado, mesmo depois do que aconteceu em Helsínquia no início da semana.
O inquérito de opinião mostra que 71% dos republicanos com assento nas duas câmaras do Congresso aprovam a forma como o Presidente está a lidar com o caso da intromissão russa, quando faltam menos de quatro meses para as eleições intercalares, que vão definir a composição da Câmara dos Representantes e do Senado para os próximos dois anos.
As últimas sondagens relativas às intercalares continuam a antever que o Partido Democrata vai reconquistar o controlo do Congresso, o que poderá dar-lhe novo fôlego até às presidenciais de 2020, que Trump pretende disputar.