Maria passeia calmamente com os filhos no centro histórico da cidade portuária de Odessa, no Sul da Ucrânia. Entra numa loja à procura de recordações para levar para a Irlanda, para onde parte dentro de dois dias. De repente, ouve-se um silvo a par de um barulho que se assemelha à passagem de um caça a baixa altitude, e logo depois um estrondo. Segue-se outro e mais outro. Os clientes na loja agitam-se.
Maria percebe o que se passa. Veio de Mariupol e revive em Odessa um ataque de mísseis que pensava ter deixado a Leste daqui. É tempo de procurar abrigo entre duas paredes atrás da caixa registadora. Abraça os filhos e ainda acalma uma senhora muito nervosa de Nikolaev. Quando nos cruzamos com alguém que se diz de Mariupol, parece que encontramos uma pessoa com quem não conseguimos comunicar no mesmo plano. Eles estiveram no pior desta guerra, nós somos meros passageiros numa escala mais agitada.
"Os mísseis caíam de meia em meia hora em Mariupol", conta-nos Maria enquanto escutamos o alarme antiaéreo que vem de lá de fora. O bombardeamento começou entre o final de fevereiro e o início de março. Primeiro ficaram sem eletricidade, depois sem água canalizada e também sem gás. Começaram a fazer fogueiras para cozinhar os alimentos que tinham, e sempre que podiam ficavam num abrigo subterrâneo.
Por esses dias, Valeri, um jovem estudante de gestão, estava também a fazer pela vida nos abrigos da sua cidade natal. Ficou 21 dias nos subterrâneos, saindo apenas para ir buscar água a uma fonte e alguma comida.
"Se andar na rua posso morrer, porque a toda a hora há tiroteios, caem bombas e é muito perigoso", explica à Renascença, agora que está em Kiev a ganhar dinheiro como taxista. Não lhe faltava comida porque se abasteceu em casa. "Os soldados da defesa territorial faziam a segurança de um supermercado e, a partir de certo dia, decidiram dar comida às pessoas", recorda Valeri, para quem apenas o acesso a água era problemático.
As casas destes habitantes de Mariupol começaram a sofrer danos – sobretudo estilhaços dos rebentamentos que desfaziam as janelas. "De um lado, tínhamos as tropas russas e do outro lado tínhamos os separatistas e ambos tentavam controlar diferentes bairros", conta Maria.
Valeri tem na memória o dia 3 de março, um domingo em tempo de guerra. "Estava a comer um ‘borsch’ ucraniano e de repente houve explosões e todas as janelas da minha casa partiram-se", relata de memória.
Estávamos no início do cerco a Mariupol e não se pode dizer que os moradores desta cidade do tamanho de todo o concelho de Loures não estivessem à espera de que a guerra ali ganhasse volume.
"Da minha casa são 40 quilómetros até à linha da frente e assim tem sido desse 2014. Em Mariupol, sabemos que a guerra está ali há oito anos, embora para muitos ucranianos ela tenha começado em 2022", desabafa Valeri, que tem memória de ter estado a ver um filme com amigos no dia em que começou a invasão russa.
"Começámos a ouvir as bombas e fomos para a parte interior do edifício, longe das janelas. Ficámos lá até de manhã, quando fui ter com a minha família para o centro da cidade, onde ficámos num abrigo", conta este jovem que saltita de trabalho em trabalho – um mês antes do início da invasão estava em Londres a estudar e a apanhar morangos para pagar a estadia.
Maria lembra-se do discurso de Putin a fazer o reconhecimento de diversas províncias do Leste nas vésperas da invasão. "Parecia que estávamos a acordar num país diferente. Mariupol era uma cidade ucraniana com um governo ucraniano, mas na verdade passava a fazer parte da República de Donetsk", lembra esta descendente de famílias nobres de Mariupol, confessando surpresa com a dimensão da ofensiva russa na sua cidade.
"A Rússia odeia as pessoas de Mariupol, porque somos na verdade uma 'pequena Europa'. Mas veja o que os russos fizeram a Donetsk nos últimos oito anos onde destruíram tudo", destaca.
No dia 15 de março, Maria ainda estava na cidade, mas Valeri já estava de saída. Seis dias depois do bombardeamento à maternidade e, no dia seguinte, ao primeiro corredor humanitário, o jovem estudante universitário saiu para Zaporizhzhia e daí para Lviv, na Ucrânia Ocidental. Colocou as mulheres da família num comboio para a Europa e decidiu tentar a sorte em Kiev como taxista.
"A minha avó, o meu irmão e o meu avô ficaram em Mariupol. Dizem que ali que viveram toda a vida e ali querem ficar. Muita gente em Mariupol precisa de medicamentos. Mas não consigo falar com eles há um mês, não há telefones", explica-nos numa pausa entre serviços.
Passa depois a descrever um engenhoso mecanismo para saber se esta ou aquela família está viva. "Não há rede, mas numa zona alta da cidade, há um fraco sinal de telemóvel. Algumas pessoas vão até aí e reportam que esta ou aquela pessoa estão bem e é tudo".Maria deixaria a cidade cinco dias depois. Entre a saída do conterrâneo e a sua partida, Mariupol assistiu ao bombardeamento do teatro e de uma escola fazendo um grande número de vítimas civis.
A rota de saída foi a mesma. Maria considera que foi na estrada para Zaporizhzhia que viveu a mais assustadora jornada da sua vida. "Fomos atacados por fogo de artilharia. Num dos locais onde estivemos, rebentou uma bomba matando toda a gente que lá estava. Tínhamos saído de lá há 60 segundos", relata Maria, sem largar uma lágrima, mas suficientemente emocionada e, ao mesmo tempo, equilibrada para fazer esta descrição.
Foi quase tudo tão desesperante como quando ia ao andar fazer o jantar e os bombardeamentos aéreos não davam tempo para chegar à cave.
"Consegui sair da cidade quando as tropas ucranianas controlavam a cidade, mas no dia seguinte os russos tomaram a cidade e as tropas da República de Donetsk vieram para a zona da minha casa. Houve muitos bombardeamentos, incluindo a partir de navios", diz Maria.
Para trás ficaram os familiares do ex-marido. A filha de oito e o mais velho de 15 anos viveram tudo isto ao seu lado. "Ele tem sido um verdadeiro homenzinho", sorri a mãe, afagando o rosto do seu adolescente. Vão agora para a Irlanda onde têm familiares.
Já Valeri, que continua nos táxis na capital, vai mostrando os vídeos da fuga que guardou no telemóvel. Diz ter um amigo no interior da metalúrgica Azofstal, onde cinco mil pessoas, entre civis e paramilitares, estão refugiados há muitas semanas.
"Ele ligou-me do local da fábrica onde têm um gerador. Disse-me que estão a tentar empurrar os soldados russos para fora dessa zona, mas precisam de ajuda", adianta antes de aceitar mais um serviço de transporte numa conhecida plataforma digital. Em Kiev, trabalha para uma empresa cujo nome é sinónimo de relâmpago. Mas em Mariupol, a vida é radicalmente diferente, "é simplesmente o inferno, o apocalipse".