O seu nome é Ken Baldwin. Em 1985, tentou matar-se através do método mais belo e eficaz: saltar da Ponte Golden State. Empoleirou-se na grade, olhou para a água a 70 metros e quatro segundos de distância. Contou até dez. Respirou. Voltou a contar até dez e deixou-se cair. Assim que entrou em queda livre, Ken caiu também na lucidez: “percebi instantaneamente que tudo o que eu achava que era inflexível na minha vida era totalmente flexível – tudo menos o facto de ter saltado da ponte”.
Kevin Hines em 2000 repetiu o gesto e a sensação de arrependimento: “o que raio acabei eu de fazer? Eu não quero morrer!”. Não, não tive acesso ao Além. Conheço as história de Ken e Kevin, porque eles sobreviveram ao salto. São milagres com bilhete de identidade e personalidade jurídica; conheceram o inferno mas regressaram para contar como é.
O suicídio é o grande ângulo morto, porque é impossível saber o porquê daquele acto; é impossível fazer a autópsia mental do suicida. Estes raros sobreviventes tornam-se assim focos de luz apontados à escuridão. Através deles, ficamos a saber que, no momento em que acciona o suicídio, no momento em que salta, o suicida acciona também o arrependimento. Ele percebe logo ali, naquela fracção de segundo, que só há uma coisa sem solução, a morte, e que a dor que sentia até há uma fracção de segundo não era o fim do mundo. Ainda em pleno ar, ele percebe que a dor, física e sobretudo psíquica, que o levou ao parapeito da ponte não é definitiva; há um amanhã, há um futuro, há conversas para ter, há abraços para dar, há fruta pra comprar e banhos para dar. O salto é ao mesmo tempo o último momento do desespero e o primeiro momento da lucidez reencontrada.
A dor engana, bloqueia a noção de recomeço. Este poder de sedução da dor psicológica faz lembrar aquele filme omnisciente e omnipresente: o “Groundhog Day”; aquela tristeza mecanizada ilude-nos, faz-nos acreditar que todos os dias serão a repetição daquele dia de abismo, daquele dia negro que se repete semana após semana como se o tempo não avançasse. Diz-se que o “tempo cura tudo”, não é?
O problema é que este vórtice anula a própria paragem do tempo, ficamos com a sensação de estamos a viver o mesmo dia (e a mesma dor) vezes sem conta num loop sem fim. É assim que nasce a tentação do suicídio: se vai ser sempre assim, então mais vale acabar o jogo agora! Quando estamos neste abismo, não conseguimos perceber que aquela dor é momentânea e não eterna; não conseguimos imaginar que, mesmo que a melancolia seja eterna, conseguiremos um dia lidar com ela da mesma maneira que lidamos com outra doença ou com a naturalidade com que falávamos na infância com um amigo imaginário.
O carácter momentâneo da vontade de morrer é reforçado por outro facto há muito conhecido em São Francisco. As pessoas cujos suicídios são abortados na hora h nunca mais tentam o suicídio. Nos anos 70, um estudo seguiu o rasto de 515 pessoas que foram agarradas ou dissuadidas ali mesmo no abismo do tabuleiro da ponte: a esmagadora maioria (94%) ainda estava viva ou tinha tido morte natural. Isto prova que o suicídio tem muito de momentâneo. Como escrevi há dias no Expresso, resulta de um cruzamento entre duas linhas temporais, a linha temporal da melancolia do indivíduo e a linha temporal da acessibilidade aos meios para a morte (veneno/drogas, saltos, armas); quando estas duas linhas se cruzam, abre-se a janela de oportunidade do suicídio, uma “hora do demónio” que pode durar semanas ou meses. Portanto, a acessibilidade aos meios durante este período negro é um factor determinante. É por isso que os grandes suicidas da classe médica são os anestesistas: são eles que têm à mão de semear as injecções letais. Em sentido inverso, é por isso que a rede anti-suicídio está a ser colocada na Golden State.
O princípio do suicídio e da eutanásia está errado. Parte de uma ilusão. É um princípio que torna absoluto o que é momentâneo (a dor) enquanto torna relativo o que é absoluto (a vida), procurando solução naquilo é definitivo (a morte). Ninguém consegue travar o desespero do suicida. Essa dor vai sempre andar entre nós. E que ninguém pense que está imune ao seu contágio. Mas, se o suicida tem “direito” ao seu desespero, a sociedade não pode validar esse desespero; a sociedade não pode eternizar algo que é relativo e passível de recuperação; a sociedade não pode aceitar o desespero como argumento. No fundo, há que ser empático com o suicida mas implacável com a lógica do suicídio.