A presidente da Cáritas Portuguesa diz que a inflação fez disparar as despesas das instituições, e duvida que os 75 milhões anunciados recentemente pelo Governo para o setor social sejam suficientes. A agravar a situação está o atraso no pagamento de apoios que lhes são devidos, para que assegurem respostas de emergência – como está a acontecer na Cáritas diocesana de Beja.
Em entrevista à Renascença, Rita Valadas lembra ainda que muitos portugueses vivem no limiar da pobreza, apesar de trabalharem, o que exige medidas estruturais e não “paliativas”, como considera serem os recentes apoios de 125 e 240 euros atribuídos pelo executivo.
Esta responsável também receia que continuem a aumentar os pedidos de ajuda, nomeadamente da classe média.
Na leitura que divulgou em novembro sobre a crise social do país, a Cáritas retratou as principais dificuldades, alertando que enfrentamos um final de ano e um início de 2023 "muito preocupante". O Orçamento de Estado que entretanto foi aprovado, e as medidas que têm vindo a ser anunciadas pelo governo, parecem-lhe suficientes?
Essa nota que fizemos em novembro está atualíssima! Estamos, de facto, a enfrentar um fim de ano muito difícil, com as pessoas muito desalentadas, e do ponto de vista financeiro, com muito ainda em aberto. Há oscilações económicas, mas não melhoram a situação das pessoas.
Há medidas que têm vindo a ser tomadas, mas permanecem no domínio das medidas pontuais, e medidas pontuais não resolvem a situação da vida das pessoas.
Refere-se aos apoios que têm sido anunciados, primeiro de 125 euros e agora, mais recente, um apoio extra de 240 euros às pessoas mais vulneráveis?
Sim. São paliativos que naturalmente fazem a alegria quando são recebidos, mas que não transformam a vida das pessoas, nem tornam mais positiva a perspetiva que têm sobre 2023. Os 125 euros permitiram, eventualmente, que as pessoas pudessem pagar algumas pequenas dívidas que tivessem, e os 240 euros farão a mesma coisa, mas é completamente pontual.
Eram necessárias medidas mais estruturais? O que é que em opinião devia ser feito?
A situação da pobreza só se resolverá mesmo com medidas mais estruturais. O difícil equilíbrio é fazer isto e garantir o propósito de luta contra a pobreza de um orçamento.
É preciso agir ao nível do rendimento. Não podemos esquecer que vivemos num país em que há uma percentagem elevadíssima de pessoas que trabalham e estão no limiar da pobreza, e isso dirá tudo sobre a necessidade de medidas diferentes.
Neste contexto de inflação, subida dos juros e salários baixos, a Cáritas prevê que em 2023 continuem a aumentar os pedidos de ajuda, nomeadamente da classe média? É essa a tendência?
Eu gostava muito de dizer que não, mas não tenho meio para o fazer.
Vimos a assistir a um desmoronamento da situação da classe média baixa, e da classe média, que claramente não tem volta a dar se não houver uma alteração estrutural das suas vidas.
Porque quando se entra no negativo, o negativo soma, a dívida fica cada vez mais alta, e se as pessoas tiverem assumido responsabilidades, nomeadamente na aquisição de uma casa, a menos que haja uma grande inversão da situação das taxas de juro, a situação vai ser muito difícil.
E o apoio às instituições? O primeiro-ministro anunciou há dias o reforço extraordinário de 75 milhões de euros para o setor social e solidário, com a promessa de atualização em igual montante, para as instituições também poderem enfrentar a inflação. Parece-lhe suficiente?
Não sei dizer. 75 milhões para o comum das pessoas é um valor imenso. 75 milhões parece muita coisa, mas são muitas as instituições que têm dívidas e estão com dificuldades por causa das taxas de juro. Mas, todas as instituições, sem exceção, têm um aumento de encargos correspondente ao aumento do custo de vida, porque também elas fornecem refeições, pagam recursos humanos, rendas e energia, e o aumento de todas estas coisas é brutal.
Eu não tenho a certeza, mas tenho algumas dúvidas que 75 milhões cheguem para, mais uma vez, agir de uma forma pontual sobre a resolução de problemas decorrentes do aumento do custo de vida e das taxas de juro. As instituições estão muito aflitas com a situação atual.
Outro problema denunciado pela Cáritas tem a ver com os atrasos no pagamento das ajudas do Estado, que está, em muitos casos, a pôr em risco a resposta às situações de emergência. Dizia-nos, no final de novembro, que era preciso rever protocolos, se fosse preciso 'caso a caso', porque estão desfasados da realidade. Isso vai acontecer?
Não depende de nós, mas espero que haja ação. Aliás, 75 milhões não resolvem os problemas que decorrem da insuficiente cooperação. Nós temos uma cooperação que tem cálculos baseados em custos que já não são, de todo, aqueles que as instituições enfrentam. Principalmente havia que agir, mas de forma consequente com a realidade que cada instituição vive.
Quando falávamos da dificuldade dos atrasos em situação de emergência, falávamos também do número de situações que temos vindo a ser chamados a colaborar, nomeadamente com migrantes e refugiados, que é um problema novo para muitas áreas do país, e a Cáritas tem vindo a ser solicitada para colaborar, quer para a sua subsistência, quer para o seu alojamento.
Quando não existem respostas sociais, é preciso abrir uma resposta, encontrar uma solução para alojar pessoas, por exemplo. No momento em que recebemos as pessoas temos que ter garantias de um financiamento, e isso não está a acontecer e acaba por dificultar a situação já frágil.
De facto, no que diz respeito a receber estrangeiros, sejam imigrantes, sejam refugiados, os custos são totais, é preciso para tudo: para os receber, alojar, alimentar e para cuidar.
Esse é um dos desafios para a instituição em 2023?
Já é um desafio para a instituição, e continuará em 2023. Acreditamos que temos alguma capacidade para responder de forma elástica a situações de emergência, mas não o podemos fazer sem orçamento. Sobretudo não podemos substituir-nos ao Estado sem o Estado corresponder.
Do ponto de vista não só de 2023, o maior desafio é encontrar uma forma de garantir a resiliência financeira. Porque tem havido nos últimos anos um somatório de crises, cada uma com as suas necessidades, e até realidades que o país não estava preparado para enfrentar, nem a Cáritas, nem o mundo em geral.
Temos alguma elasticidade na capacidade de responder a situações de emergência, mas não estamos preparados do ponto de vista financeiro para poder corresponder sempre.
Estamos sempre disponíveis para colaborar, mas temos de ter canais que agilizem a solução destas situações que são de emergência.
Quando os problemas são de emergência não podem guardar-se para o dia seguinte. E a Cáritas não sabe trabalhar na base de uma emergência a ser resolvida no dia seguinte. Mas, para isso tem que encontrar canais que colaborem para esta disponibilidade que a Cáritas tem.
Estamos na semana do Natal e decorre anda a campanha '10 milhões de estrelas'. Que importância tem no financiamento da instituição e a que é que se destina?
É uma campanha muito estruturante para a Cáritas, cujo rendimento financeiro fica nas cáritas diocesanas, na sua maioria, embora haja um objetivo que também internacional. Esta campanha tem uma percentagem que fica nas cáritas, e outra que é para um projeto internacional que a Cáritas Portuguesa decide, em sede de Conselho Geral.
Este ano decidimos, face à situação que temos vindo a viver, que 20% do valor angariado será para este projeto internacional, e estamos a testar uma nova perspetiva: que este projeto seja articulado com as cáritas lusófonas que estão com muitas dificuldades e com severas crises humanitárias. Estamos já a testar um Fundo Cáritas Lusófona, exatamente para esse fim.
Estes 20% serão para esse Fundo, que pretende apoiar projetos cuja execução seja possível em seis meses, com um valor de aproximadamente 12.000 euros, no máximo, para questões como a água, a organização das cáritas lusófonas, a sua resiliência. Não são projetos de continuidade, são 'one shot', para tentar resolver um problema, e não são candidatáveis a outros fundos. Pensamos que assim podemos robustecer a rede das cáritas lusófonas e facilitar a sua resposta a situações que são chamadas a colaborar.
Mas é para as várias cáritas lusófonas, ou tem um destinatário certo?
É por candidatura. Quando soubermos o resultado de 2022, abre-se o concurso às cáritas lusófonas e elas fazem concorrer projetos que iremos divulgar.
Aquilo de que nos apercebemos é que há vários projetos em que podemos fazer uma diferença enorme na vida de muita gente, a começar pelas cáritas nos vários países lusófonos.
E a Ucrãnia?
Temos uma campanha para a Ucrânia, específica, que foi aberta em 2022 e que tem vindo a receber vários contributos. Não só para a Ucrânia, mas também para os países que têm vindo a receber as pessoas que fogem da guerra, como Portugal. Estamos a apoiar as pessoas vítimas desta guerra nos vários países, e já fizemos transferências para a Polónia, Moldávia, Roménia e para as duas cáritas que existem na Ucrânia.
A campanha '10 milhões de Estrelas' consiste na venda de velas, em forma de estrela, que estão disponíveis em supermercados, paróquias e nas várias cáritas. As pessoas podem continuar a contribuir?
A campanha existe não só como uma campanha financeira, mas também como alerta para as questões da paz. Por isso, todas as cáritas diocesanas têm um calendário que trabalha estas questões sobre a paz com as crianças e os jovens.
A estrela é o objeto físico que representa a campanha, que permite algum apoio financeiro à ação das cáritas diocesanas. Podem ser adquiridas nos Supermercados da rede Pingo Doce, nas cáritas diocesanas, no site da Cáritas Portuguesa, e o resultado é 80% para as cáritas diocesanas e 20% para o projeto internacional, neste caso para o Fundo Lusófono.
Que mensagem deixa neste tempo de Natal?
A mensagem mais importante para mim é que as pessoas tenham consciência de que sua participação é muito importante, seja em que nível for, financeiro ou presencial. E que tenham esperança, porque perder a esperança significa desistir, e desistir não é cristão. E sobretudo que saibam que a Cáritas está disponível para apoiar, sem qualquer exceção, as pessoas, os mais frágeis e os mais vulneráveis, e tentará sempre encontrar uma solução, mesmo que os recursos não sejam evidentes nesse momento.
Por isso, esperança e proximidade: vamos todos tentar olhar para quem está mais próximo e precisa de ajuda, e vamos acreditar que há instituições em Portugal que conseguem fazer chegar os apoios a quem mais precisa. Por isso, juntem-se à Cáritas.