O teletrabalho tem sido apresentado como a panaceia que resolverá a tensão entre o trabalho e a vida familiar. Lamento, mas o teletrabalho não é uma utopia, é uma distopia ainda mais individualista por várias razões. Em primeiro lugar, permite o abuso das chefias; o fluxo de trabalho não tem fim, porque não há respeito pelo horário de trabalho. Ou seja, o teletrabalho reforça a perversão que o telemóvel já tinha introduzido: o desprezo pela fronteira entre o tempo do trabalho e o tempo da família; é sempre tempo de trabalho, porque o funcionário está sempre do outro lado do mail.
Em segundo lugar, o teletrabalho permite a desumanização das relações. É difícil despedir uma pessoa que se conhece cara a cara (e deve ser difícil). Não é difícil despedir uma pessoa que não se conhece, uma pessoa que não passa de um avatar do zoom ou do webex, uma pessoa que é só um endereço de mail. Em terceiro lugar, não se cria um espírito de corpo à distância. Uma empresa é um corpo social, não é um mero agregado de indivíduos. Grandes ou pequenas, as empresas que perduram têm um sentimento de pertença que se cria no contacto diário e pessoal. São pequenos exércitos, são colectivos, são mais do que a soma das suas partes. Em quarto lugar, ir para o trabalho e voltar para a casa do trabalho são rituais que arrumam a nossa cabeça; a viagem até ao trabalho desinfecta a mente das questões caseiras, preparando-a para o trabalho. A viagem de regresso faz o processo inferno. Porque é que acham que há espaços de co-work para pessoas que poderiam perfeitamente trabalhar em casa?
Não, o desejado equilíbrio entre trabalho e família não vai ser feito com o teletrabalho. A solução, a meu ver, continua a ser a mesma. Era assim antes do covid, é assim depois do covid: a solução passa por sairmos do trabalho às quatro ou cinco, e não às seis, sete ou mesmo oito. O longo almoço dos portugueses, quase sempre entre as 13h e as 14h, é uma aberração que torna impossível um regresso a casa em tempo familiarmente útil. Se saímos às 18, 19 ou 20h, não temos tempo para estarmos com os filhos, que crescem sozinhos, e, já agora, também não temos tempo para vermos os nossos pais, que envelhecem sozinhos.
O longo repasto reforça assim uma ideia muito típica do chefe português: o bom funcionário tem de ficar até às seis, sete ou oito, pois caso contrário é censurado. É o exacto oposto do que se passa na Alemanha, por exemplo, país onde o funcionário é censurado precisamente se ficar a trabalhar até tarde. Se não faz o seu trabalho até às quatro ou cinco, o funcionário não está a ser produtivo para a empresa e, acima de tudo, não está a ser amigo da sua família.
Espero, portanto, que estes meses de teletrabalho questionem pelo menos esta cultura presencial e sacrificial das empresas portuguesas. Se organizarmos o trabalho de forma a sairmos às cinco, seremos mais produtivos no escritório e seremos sobretudo melhores pais em casa - uma utopia, eu sei. Mudar um hábito tão enraizado como o almocinho é talvez impossível. Mas a incapacidade para mudarmos deixa-nos neste cenário embaraçoso: por desejo ou por inércia, os portugueses acabam por almoçar com os colegas de trabalho em vez de jantarem com os filhos. É isto moralmente sustentável no pós-covid?