A associação ambientalista ZERO “tem enormes dúvidas” sobre o gasoduto que deverá ligar a Península Ibérica ao resto da Europa. À Renascença, Francisco Ferreira critica a medida, questiona os objetivos e garante que, do ponto de vista ambiental, “é uma aberração”.
Os ambientalistas receiam que a necessidade urgente criada pelo conflito na Ucrânia leve os Estados-membros da União Europeia a regredir nas políticas climáticas, com a “ultrapassagem de regras ambientais”, através de avultados investimentos no curto prazo, sem a devida análise de alternativas ou identificação dos beneficiários.
A ZERO defende que as declarações do chanceler alemão, Olaf Scholz, que animaram Portugal e Espanha a avançar com a “expansão acelerada da rede de gás natural fóssil na Península Ibérica”, sejam vistas “com grande precaução”.
A associação teme que, tanto os países envolvidos como a própria União Europeia, gastem “milhares de milhões de euros num contexto específico de curto prazo em investimentos ociosos que poderão pôr em causa os objetivos europeus de combate às alterações climáticas”.
Um retrocesso na política climática
Francisco Ferreira, presidente da ZERO, admite falta de coerência do próprio executivo comunitário, ao apoiar investimentos que contradizem tudo o que tem sido aprovado e publicado em matéria ambiental.
Lembra ainda que este investimento coloca em causa os próprios objetivos climáticos e energéticos na União Europeia, ao estimular a utilização de gás natural no médio e longo prazo, um gás fóssil “cuja queima implica emissões de gases de efeito de estufa que conduzem ao aquecimento global e consequentes alterações climáticas”.
Segundo o ambientalista, as medidas que entram em conflito com as metas de Bruxelas, no âmbito do pacote Objetivo 55, de redução do consumo de gás em, pelo menos, 30% até 2030, ou a redução de mais de 50% do consumo de gás, face a 2019, inscrita no RePowerEU.
Quanto vai custar e quem paga a fatura?
Francisco Ferreira pede transparência aos decisores políticos. Lembra que, de acordo com estudos de 2017, a ligação de gás entre Espanha e França estava avaliada em 3,1 mil milhões de euros, “obviamente a pagar pelos contribuintes europeus, direta ou indiretamente”.
Este cenário agrava-se com a falta de preparação da rede para o transporte exclusivo de hidrogénio. Tal como acontece com as linhas férreas, em que a mudança de bitola implica a atualização de toda a linha, também aqui será preciso atualizar e preparar a ligação para o transporte de hidrogénio, além dos custos de exploração. Podemos estar perante um investimento adicional de mais de 50%, pelas contas da ZERO.
Uma das razões pelas quais os reguladores chumbaram a passagem do gasoduto pelos Pirinéus foi justamente os custos, tão elevados que seriam necessárias dezenas de anos para amortizar o investimento, podia ir para além de 2050.
Quem paga? Os consumidores e os restantes cidadãos da União Europeia, em função do financiamento, explica a associação. É um investimento arriscado, que pode incluir “a subutilização das infraestruturas e custos irrecuperáveis”, avisa. Por isso exige uma “rigorosa avaliação dos impactes nas metas de descarbonização” e “total transparência e honestidade nos números de investimento na construção e operação”, antes de qualquer decisão.
Obras em Portugal podem estar já ultrapassadas
Em resposta ao incentivo do chanceler alemão, o primeiro-ministro português garantiu esta semana que os trabalhos sobre o gasoduto estão “muito avançados”. António Costa falava da terceira interligação entre Portugal e Espanha, entre Guarda e Zamora via Trás-os-Montes, que deverá ficar concluída em 2028, segundo os projetos enviados a Bruxelas.
O chefe do Governo garantiu ainda que “há um traçado que agora está definido, cuidadoso, que protege os valores ambientais, que importa proteger também no Vale do Douro”.
No entanto, a situação não é assim tão simples e clara para a ZERO, que ainda defende a necessidade de uma avaliação de impacte ambiental ao “atravessamento de zonas sensíveis como o Vale do Douro”. É ainda necessário perceber quanto custa exatamente preparar a rede primária de gás natural para o transporte exclusivo de hidrogénio, que segundo estudos realizados ronda “um terço dos custos de construção de uma rede nova”, e qual é a capacidade de produção de hidrogénio verde do país.
Portugal vai mesmo beneficiar com o gasoduto?
O presidente da ZERO questiona se o país se está a precipitar num projeto que, contas feitas, poderá acabar por trazer vantagens limitadas e circunstanciais aos consumidores.
Francisco Ferreira alerta para a posição geográfica dos portos nacionais e dos concorrentes espanhóis e futuras ligações com África, que podem vir a determinar a forma como as infraestruturas são exploradas.
Questiona ainda a viabilidade do grande plano deste executivo, de transformar o Porto de Sines numa “plataforma de passagem do conteúdo de grandes navios metaneiros para outros, mais pequenos”. É mais rápido e fácil recorrer a navios para transportar gás natural liquefeito (GNL) do que construir um gasoduto para responder às atuais necessidades energéticas, “sem avultados investimentos ociosos”. Por outro lado, já existem muitos portos espalhados pela Europa, a própria Espanha tem muito mais do que Portugal.
Também há muita informação ainda por divulgar, como por onde vai passar o gás a partir de Espanha. A ministra espanhola da Transição Ecológica garantiu esta semana que o novo gasoduto entre Espanha e França pode estar operacional “em oito ou nove meses”. Mas Francisco Ferreira explica que esta construção levará anos, além de comprometer as metas ambientais. Itália pode ser uma alternativa, mas esta alternativa não está avaliada.
“Estaremos nós a embarcar num projeto com benefícios que não teremos?”, questiona.
Um recuo ambiental
A cereja no topo do bolo dos argumentos da associação é a questão ambiental. Desde logo, lembram que o gasoduto é um projeto de médio, longo prazo que, por lei, fica obsoleto a partir de 2040. É que o uso de gás natural fóssil para produção de eletricidade está proibido em Portugal pela Lei de Bases do Clima a partir de 2040.
Mas estão em risco também decisões definidas à escala europeia, nas políticas climáticas, de gestão de recursos e de biodiversidade.
Para a ZERO, a verdadeira opção deve passar pela redução do consumo de energia, esta “é a forma mais limpa e mais barata de a sociedade se desabituar do gás (ou de qualquer outro combustível fóssil) e de cumprir os compromissos climáticos da UE para 2030 – a energia mais limpa e mais barata é a que não é gasta.”
O hidrogénio está a ser apresentado como alternativa, mas “mesmo nos casos em que o uso direto de hidrogénio, em substituição do gás fóssil, é justificável, ele deve ser produzido próximo do local de consumo com recurso a fontes renováveis e não transportado por gasoduto”, defende a ZERO.
A melhor solução, para a associação, seria o “reforço das interligações elétricas que possam transportar os eventuais excedentes de energia renovável produzida na Península Ibérica para o resto da Europa”.