O processo Manuel Vicente também dividiu os angolanos e até pôs em causa a esperança em João Lourenço. É o que diz o jurista Benja Satula. Aos 39 anos é um dos rostos da elite angolana.
Sem ligação a nenhum dos partidos tradicionais de Angola, liderou um movimento pela transparência da escolha de juízes para os tribunais superiores. Mas, ao mesmo, tempo é também um dos advogados de “Zenu”, José Filomeno dos Santos, um dos filhos do antigo Presidente angolano José Eduardo dos Santos, que foi constituído arguido por alegada burla ao Estado angolano.
Em entrevista à Renascença, no fim da visita do primeiro-ministro português a Luanda, Benja Satula, que também é professor na Universidade Católica de Luanda e especialista em combate ao branqueamento de capitais e evasão fiscal, começa por responder sobre a utilidade de um dos acordos assinado em Luanda: o protocolo para evitar a dupla tributação.
Um dos momentos altos desta visita de dois dias do primeiro-ministro português a Luanda foi a assinatura de um acordo considerado histórico para evitar a dupla tributação. Ambos os governos o consideram útil para combater a fraude e evasão fiscais além de facilitar a vida às empresas. Acha que é um instrumento de facto útil?
Acho que sim, mesmo que na prática as empresas e os investidores possam não conseguir resultados palpáveis. A própria ideia da existência de um acordo entre Angola e Portugal para evitar a dupla tributação é ótima porque é uma coisa que já se estudava e já se colocava muito em causa durante muito tempo por causa do fluxo de trocas comerciais entre Portugal e Angola. Formalizar a intenção é um bom princípio e, a partir daí, dependerá da boa vontade dos executores perceber se este acordo vai surtir efeito e, depois, devemos daqui a um ano fazer uma avaliação estatística para perceber se uma parte beneficiou uma parte ou outra.
Como acompanhou esta visita do primeiro-ministro português a Luanda?
Faço uma avaliação positiva. A relação entre Angola e Portugal tem uma dupla vertente: é uma relação formal entre instituições e, fundamentalmente, entre as instituições do Estado e uma relação mais informal ou material entre as pessoas e os setores do comércio que deixam o Estado de parte. Desse ponto de vista, a relação entre as pessoas e entre os empresários acabou por não ficar muito beliscada, a não ser pelo facto de Angola estar a passar por uma crise de divisas muito influenciada pela crise do “compliance”, do combate ao branqueamento de capitais que não conseguimos evitar. Mas há uma relação formal, institucional que tinha ficado beliscada por causa do processo do eng. Manuel Vicente que também dividiu pessoas cá em Angola.
Havia quem achasse que o processo não tinha de vir para Angola?
Exatamente. Uma boa parte dos angolanos, fundamentalmente os juristas, entendiam que havia motivos suficientes para que ele fosse julgado em Portugal, para que o processo continuasse lá.
E o que pensa sobre isso?
Essa é também a minha opinião. Depois, o que aconteceu cá é que se fizeram misturas entre imunidades, entre questões políticas e outras, mas na verdade se o caso fosse apreciado apenas do ponto de vista da competência, do princípio da territorialidade - os atos foram praticados em Portugal, ele não era vice-presidente à data dos factos -, ele poderia responder à justiça em Portugal.
Como jurista não o irrita tratarem como “irritante” um assunto desta importância jurídica?
Irrita completamente. Primeiro, porque o posicionamento do Estado angolano - neste caso, do Presidente da República - foi um posicionamento que, em grande medida, não ajuda, não dá um tratamento igualitário a todos os angolanos. Foi uma das questões que se levantaram: há imensos angolanos em conflito com a lei e a justiça em Portugal, nunca ninguém veio em seu socorro, sempre deixámos que Portugal resolvesse, tal como há muitos portugueses cá com problemas com a justiça e a justiça angolana resolve.
O que aconteceu é que o eng. Manuel Vicente era um dos eleitos, um dos que sempre participou nas decisões, no festim nacional e, de facto, os seus homólogos vieram em seu socorro. Chamar isto de "irritante", numa relação entre Estados - quando o que tínhamos era um problema que devia dar um debate profundo sobre o combate à impunidade - aquilo deixou as pessoas muito irritadas e até freou a esperança inicial saída das eleições. Se o Presidente da República vai corrigir o que está mal e quer combater a corrupção, vir dar o peito ao manifesto por causa de um processo com aquela natureza era, de facto, uma coisa que não fazia sentido.
Essa esperança de que falava no Presidente João Lourenço parece ter recuperado. Há aqui de facto um sentimento de "desta vez é que é"?
O grande problema é que as intenções do Presidente são boas, tudo o que fez até aqui é muito bom. As aberturas que provocou, as quebras de monopólios, o relançamento da confiança no direito e na justiça são sinais fantásticos. Por vezes, temos ideias boas, mas o caminho para materializar essas ideias não é … e nós temos um grande problema aqui em Angola que é quase cultural: temos muito bons discípulos e os discípulos que são aqueles que participam no banquete, seguem muito bem o líder.
Não têm consciência critica...
Não. De tal forma que, até antes das eleições, uma critica que era feita ao Presidente Eduardo dos Santos e à forma como governou o país é que as pessoas que se opunham eram conotadas como revolucionárias ou que não queriam o desenvolvimento do país e, hoje, quem vem defender o Presidente Eduardo dos Santos já é conotado como uma pessoa que tem saudades do passado, quando na verdade todos queremos o João Lourenço e o João Lourenço tem de seguir adiante.
Mas as coisas têm de ser feitas de forma muito clara, a lei tem de estar acima de tudo. Por vezes, a euforia e um discurso galvanizado pode levar a que se cometam outros abusos e outros excessos desnecessários nesta altura em que precisamos de reconciliação, de nos reconciliarmos entre nós, de reconciliar as instituições e devolver às instituições a força que devem ter destituídas da imagem da pessoa que está à frente. Agora, cabe ao Presidente João Lourenço escolher o melhor caminho para fazer isso porque, se ele não escolher o caminho, daqui a nada temos mais do mesmo.
Acha que pode haver um clima de ajuste de contas com a família Eduardo dos Santos?
O Presidente João Lourenço entendeu que não, mas está visto que existe um ajuste de contas, não só com a família, mas com o 'eduardismo', com todos aqueles que eram da entourage mais próxima de Eduardo dos Santos e, agora, têm necessariamente de provar que o património que têm, os meios que têm, os investimentos que fizeram não foram lesivos do Estado e, se não provarem, alguns hão de responder na justiça.
Já disse que é preciso acabar com o sentimento de impunidade que havia na sociedade angolana. Acha que já está em curso?
Rapidamente saímos do 8 e estamos a caminhar para o 80. Ou seja, saímos de uma situação em que era gritante a impunidade e havia pessoas que eram completamente intocáveis, pessoas e negócios e sectores da economia e da sociedade que eram impenetráveis. Hoje, estamos noutro extremo, estamos a julgar que tudo o que está ligado ao passado é mau e tem de ser combatido. Nisto, os tribunais jogam um papel muito importante porque podemos entrar num absolutismo, num totalitarismo jurídico em que tudo aquele que é constituído arguido é depois condenado porque estamos alinhados com o discurso do Presidente. E como estamos alinhados, não interessa se os prazos, os requisitos, os indícios estão preenchidos, basta a pessoa ser catalogada como corrupta. Corre-se o risco de o tribunal não averiguar convenientemente, deixar a pessoa ficar detida e depois ser condenada.
É por achar que há esse risco que também se envolveu na defesa de um dos filhos de José Eduardo dos Santos?
Não necessariamente. Tocou-me mais a ideia de que as pessoas estavam a fugir. Não sou uma pessoa que simpatizasse com a governação do Eduardo dos Santos, nem que tomasse parte dos negócios ou que advogasse alguém que tivesse interesses com o Estado, mas quando o processo começa a espoletar percebi - no escritório tivemos de decidir, discutimos e percebemos que tínhamos aqui um posicionamento a marcar. Somos advogados, somos profissionais, temos de olhar para os factos e vamos defendê-lo até onde for necessário, até onde ele tiver direitos e sentirmos que os direitos estão a ser violados. Vamos esperar que se faça justiça sem emoções, sem alaridos e sem entusiasmos frenéticos que são maus para fazer justiça.
De que é que Angola mais precisa neste momento?
O que precisamos é tornar o país sustentável, é recuperarmos o sistema de educação que está completamente falido, é devolvermos às pessoas uma dignidade de vida que passa, necessariamente, por lhes assegurar acesso à saúde. O nosso sistema de Saúde também está completamente caótico. As pessoas que têm algum poder económico vão para a Namíbia ou Portugal, ou África do Sul ou Londres; inclusive, diretores clínicos de clínicas renomadas aqui em Luanda. Depois, precisamos de tornar as nossas cidades mais sustentáveis para irmos construindo um país melhor e com mais qualidade de vida.
E que papel acha que Portugal deve desempenhar neste futuro de Angola?
Portugal tem sempre um papel fundamental, porque, quer queiramos quer não, temos uma história comum ou a ilusão de que temos uma história comum. Precisamos que Portugal traga para Angola - não só aquela ideia de que é um “El Dorado” - boas práticas como a do sistema de educação, do Sistema Nacional de Saúde, a própria ideia de investigação na área da saúde, de financiamentos de fundações. São boas práticas que Portugal podia trazer para Angola e poderia ajudar ao desenvolvimento de Angola. E também boas práticas a que chamamos a 'experiência da não experiência'. Portugal tem muitas parcerias público-privadas que não funcionaram muito bem e acabaram por ser o espectro da corrupção; seria bom que, com serenidade e responsabilidade, aconselhasse os decisores a dizer: "olhem, as nossas parcerias público-privadas falharam neste e naquele sentido, é melhor não tomar esse caminho". A nossa história é indissociável e vamos continuar juntos.