São dez horas da manhã e as ruas de Miragaia, de Tomás Gonzaga e a dos Armazéns estão desertas. É preciso subir mais um pouco para encontrar meia dúzia de pessoas. A maioria está de passagem, as restantes, poucas, estão sentadas nas esplanadas dos cafés.
Não demora muito para que o tema dos alojamentos se infiltre nas escassas conversas. No café, comenta-se que há muito que os "hostels" se impõem numa paisagem cada vez mais descaracterizada. "Não são os turistas dos 'hostels' que vêm melhorar os nossos negócios. Eles comem lá dentro e depois saem por aí, para mais longe.”
Na mercearia do Largo de São Pedro de Miragaia, a normalidade do dia a dia também vai sendo entrecortada pelas queixas: “Casa sim, casa não… Já temos pouca gente aqui, ainda querem expulsar mais.” É Maria Helena Teixeira, 76 anos, que fala, mas o problema parece incomodar a todos. Vive em Miragaia há 50 anos e paga 15 euros de renda.
As rugas no rosto de Maria Helena não são um posto, quando se trata da lei dos arrendamentos que tem tornado o Porto cada vez menos portuense: "Estou à espera de receber uma carta. Eles têm de resolver a minha situação."
Em 2012, a chamada "lei Cristas" liberalizou o mercado de arrendamento e, desde então, os preços têm vindo a ser atualizados. No Porto, como em Lisboa, assiste-se a ordens de despejo crescentes, insatisfação de inquilinos e proprietários, rendas que disparam rapidamente e à infiltração premente do turismo.
"A minha situação é parecida com a de muitos moradores das freguesias de Miragaia, da Vitória, da Sé e de São Nicolau. Estas freguesias estão a tornar-se apetecíveis aos olhos dos investidores imobiliários e não há respeito pelas pessoas que aqui vivem há tantos anos", assevera António Dias, de 63 anos.
As críticas deste habitante de Miragaia não ficam por aqui: "Estão a expulsar os portuenses da cidade e isto é terrorismo no arrendamento."
A segurança do discurso contrasta com o momento de incerteza que diz viver. "Eu tinha um contrato de arrendamento realizado em fevereiro de 2017. Tinha ainda mais dois anos de contrato e o senhorio disse-me 'ou sais agora e dou-te algum dinheiro por aquilo que gastaste na casa, ou, então, em fevereiro de 2020, sais a zero'. Isto foi uma forma de chantagem para me colocar fora", conta.
Mas António Dias nem está focado em excluivo no seu problema: "Há senhoras, com 75-80 anos, a sofrer esse tipo de pressões, o que é lamentável".
Sem plano B, António Dias tem vivido um dia de cada vez. Também Sara Marques encara o dia a dia de uma forma cautelosa. Tem 29 anos, dois filhos e vive em casa da avó, em risco de despejo. Preocupada, sorri, por vezes, na esperança de que o futuro lhe sorria de volta.
"A minha avó paga cerca de 170 euros de renda. Já aqui vive há 70 anos e ela tem 72. Ela vivia aqui com os pais, casou e continuou a viver no mesmo sítio", conta à Renascença.
Setenta anos depois, foi a vez de a pressão imobiliária bater à porta da avó de Sara: "O senhorio disse-lhe que precisava de falar com ela. Foram tomar um café os dois, porque ele lhe disse que não precisava de levar os filhos. Disse-lhe que ia vender o prédio, que lhe queria dar cinco mil euros. Depois de 70 anos, com as rendas como estão, cinco mil euros é muito pouco. A minha avó disse que ia pensar e que ia falar com uma advogada. O senhorio respondeu-lhe que podia pensar, mas que, entretanto, podia já assinar um papel. A minha avó, por acaso, não assinou."
A partir daí, as tentativas de influenciar as decisões da inquilina intensificaram-se. "Houve uma altura em que o senhorio lhe estava sempre a ligar. Ele queria que ela assinasse o documento. Depois, como ela deixou de atender as chamadas, ele desistiu", relata Sara Marques.
Nem todos os casos, no entanto, tiveram o mesmo desfecho: "Eles pressionam as pessoas, pessoas de idade que têm medo, que acabam por assinar e depois perdem tudo. Na rua onde vive a minha avó, há oito prédios seguidos. Cinco deles estão nesta situação. Estamos a falar de pessoas já com muita idade, a partir dos 70 e tal anos. Eles pressionam as pessoas, dizem que vão arranjar casas, mas é só para ver se as pessoas assinam. Se assinarem, são obrigados a sair.”
Por uma carta que a avó de Sara Marques recebeu, chegou a informação de que o senhorio “vai fazer uma escritura no dia 6 de junho”. Para já, ainda não vão sair porque ainda não entraram em acordo com o proprietário.
No entanto, a jovem teme pelo futuro: "A minha avó diz que, se tiver se sair, vai montar uma tenda à porta da Câmara. A minha avó é viúva. A reforma dela combinada com a reforma do meu avô é cerca de 420 euros. Não consegue sobreviver com os preços das rendas de hoje em dia."
As histórias de pressões e despejos ouvem-se a cada esquina e, nas ruas, são os turistas e os investidores que substituem os nativos. "Olhe, mais um investidor que vai ali...", aponta António Dias, quando um vulto engravatado e de capa de argolas debaixo do braço sai do prédio em frente.
Para além das preocupações individuais, há um sentimento partilhado: a saudade em relação à morada que se vai tornar passado e a tristeza por ver o Porto descaracterizado. "Vê-se pouca gente. Eu tenho quase 30 anos e eu recordo-me de vir à noite brincar para a rua e de ver as pessoas nas soleiras das portas, sentadas, a conviver umas com as outras. Hoje em dia, não se vê ninguém. Vemos mais turistas e já há turistas que comentam que não vêem ninguém nas ruas", reflete Sara Marques.
António Dias vai mais longe: “O presidente da Câmara está a colocar os assuntos comerciais à nossa frente e a desrespeitar as gentes das quatro freguesias do Centro Histórico do Porto, que são as raízes culturais da cidade. Poucos restam. Eu diria que, do histórico e das tradições da freguesia, muito pouco resta.”