António Vitorino entra agora no último ano de mandato à frente da Organização Internacional das Migrações (OIM) marcado pela guerra da Ucrânia e pelo impacto negativo dos preços da energia e dos alimentos na própria operação da organização que dirige.
Nesta entrevista à Rensacença, o antigo ministro português diz-se preocupado com o financiamento para as populações mais atingidas pelas alterações climáticas e diz ser preciso enfrentar lacunas no combate judicial ao tráfico de seres humanos.
Qual é por estes dias a prioridade de um diretor-geral da Organização Internacional das Migrações ?
A atualidade está obviamente dominada pela situação na Ucrânia, mas não podemos esquecer as outras crises humanitárias que estão a decorrer no mundo inteiro. A última avaliação das Nações Unidas revela que há cerca de 300 milhões de pessoas que precisam de assistência humanitária. O meu dia é dividido por diversas preocupações, mas a situação na Ucrânia é aquela que ocupa mais o meu tempo.
A situação na Ucrânia obriga a canalizar recursos de outras crises empenhados noutras crises ?
Notamos uma redução dos financiamentos e dos apoios para outras crises. Não digo que é por causa da situação na Ucrânia, porque vivemos tempos muito perturbados à escala global do ponto de vista económico e os recursos são finitos. Tem havido redução de financiamentos para a situação dos Rohingya no Bangladesh ou para a situação de fome que existe na Somália afetada pelo conflito interno. E temos novas crises sempre a surgir como a da Somália, onde há cerca de um milhão de deslocados por causa da seca. Junte mais um milhão e meio na Etiópia e no Quénia e temos uma situação muito dramática do ponto de vista humanitário. Mais recentemente, as cheias no Paquistão atingiram 33 milhões de pessoas e a água cobre 30 % do território paquistanês. Infelizmente assistimos a um aumento contínuo das necessidades de assistência humanitária á escala global e uma contração dos recursos financeiros disponíveis.
Não há boas notícias ?
Para mim, ter boas notícias é chegar ao fim do dia e concluir que contribuímos para aliviar o sofrimento de pessoas.
Quantas vezes tem esse sentimento ?
Tenho a convicção e até a esperança de que fazemos isso todos os dias, em todos os teatros de operação. A OIM é uma grande organização, presente em 180 países e não nos faltam ocasiões para apoiar as pessoas que mais necessitam. O panorama geral é bastante cinzento. Não vou ser ingénuo e afirmar que há sinais de melhoria aqui e além. Não há, infelizmente. As crises duram hoje mais do que no passado. Por exemplo, a crise palestiniana é histórica, mas a crise dos sírios leva uma guerra civil que começou há já 11 anos. E na crise venezuelana há uma deslocação por toda a América Latina que provavelmente atingirá 6 milhões de pessoas. E há os quase 8 milhões de ucranianos em países da União Europeia, a que acrescem 7 milhões de deslocados internamente na Ucrânia.
Esteve recentemente em Itália, aliás logo após a eleição de uma primeira-ministra que tem uma posição anti-imigração conhecida. Está preocupado com esse facto?
Vejo com enorme preocupação todas as posições que fazem dos imigrantes um bode expiatório. E também com um profundo sentimento de injustiça, pois é preciso recordar que na pandemia, quando estávamos todos fechados em casa com medo do vírus, continuávamos a ir ao supermercado, a usar transportes públicos e a comer e a beneficiar de produção agrícola. São sectores onde há uma grande presença de imigrantes, que não estavam fechados em casa, mas na primeira linha para garantirem que podíamos estar protegidos. É muito injusto estigmatizar os imigrantes que na altura foram considerados trabalhadores essenciais e que continuam a ser para o funcionamento das nossas democracias e sociedades. Esperemos para ver a situação concreta na Itália. Uma coisa são os discursos da campanha eleitoral interna, outra coisa será o exercício do poder político. Aguardaremos serenamente para ver quais serão as posições políticas do novo governo italiano, quando ele se formar.
Tem indícios de moderação em Itália sobre as posições sobre imigração?
Não vou entrar em detalhes. Tive um encontro com o Presidente da República italiano onde trocámos impressões sobre o papel importante desempenhado por Itália nas políticas migratórias globais. Uma coisa é a política interna italiana, outra coisa é o compromisso que Itália tem de apoiar países como a Líbia ou a Tunísia ou o Egipto ou mesmo países da região do Sahel.
Mas há uma promessa de um bloqueio naval no Mediterrâneo.
É mais fácil dizer que fazer. Já ouvimos isso antes da boca do senhor Salvini. Há precedentes que aliás não funcionaram. A Itália tem uma enorme diáspora de emigrantes no mundo inteiro. E muito do funcionamento da economia italiana depende da mão-de-obra imigrante , no sector agrícola do Sul e na indústria no Norte.
Para isso é preciso que a União Europeia force a Itália a uma posição mais moderada ? No que diz respeito aos migrantes há também uma nova governação anti-imigração na Suécia. Que caminho é este que os cidadãos europeus estão a tomar em relação aos migrantes ?
Há que reconhecer que a Itália tem alguma razão de queixa em relação à União Europeia. O mecanismo de relocalização definido para as chegadas oriundas do Mediterrâneo Central e Oriental não funcionou. Cabe, portanto, à União Europeia ser mais ousada no apoio a Itália. É com preocupação que vejo que, numa série de países há um conjunto de forças políticas que utilizam os imigrantes como bode expiatório que vai muito além dos problemas que existem - não o nego - na integração dos imigrantes nas sociedades de acolhimento. São problemas sociais gerais na sociedade, de dúvidas e incertezas sobre o futuro, em que alguns políticos pouco escrupulosos distorcem a realidade e apresentam os imigrantes como o bode expiatório.
As políticas de integração estão a falhar na Europa ?
Não há nenhuma política de integração exemplar. São políticas complexas, que se jogam a vários níveis. Há políticas nacionais de integração, que são muito importantes e com exemplos positivos como por exemplo na Alemanha ou até em Portugal. O sucesso ou insucesso da integração dos imigrantes joga-se a nível micro, no local de trabalho, na residência, na integração dos filhos dos imigrantes no sistema escolar nacional, no acesso aos cuidados de saúde. E é aí que estão os grandes desafios, onde as autoridades locais têm um papel fundamental tal como a Igreja Católica em muitos países, como em Portugal. Verifico que quando há um contacto direto e humano com os imigrantes, essa estigmatização da imigração sai imediatamente diluída.
No Pacto de Migrações e Asilo, parece haver uma corrida contra o tempo para acelerar este processo no Parlamento Europeu antes das eleições europeias. Para si, é essencial que a legislação seja aprovada antes dessas eleições ?
O Pacto foi apresentado há dois anos. O último progresso significativo numa foi tomado numa presidência portuguesa.
A próxima Presidência europeia será da Suécia, onde há agora um governo com retórica anti-imigração.
Teremos que aguardar ainda a composição do novo governo sueco. Manifesto a minha perplexidade pelo facto de não ter havido praticamente nenhum progresso neste últimos dois anos em relação à aprovação dos instrumentos fundamentais para o Pacto da Migração e Asilo. Mas a Presidente da Comissão Europeia sublinhou no Discurso do Estado da União que iria atribuir um novo ímpeto à questão da imigração. Se quisermos ter uma visão mais positiva, há que reconhecer que a decisão que a União Europeia tomou ao aplicar a diretiva de proteção temporária aos ucranianos que saíram da Ucrânia e vieram para a União Europeia é um passo muito positivo no sentido certo.
O democrata-cristão alemão Friedrich Merz tem levantado algumas interrogações sobre imigração nas últimas semanas. Teme pressões negativas sobre o Chanceler Scholz na Alemanha?
Não vou negar que a questão da imigração é muito divisiva nas políticas internas e a Alemanha não é exceção. Contudo, acho que há um legado histórico da senhora Merkel e da crise de 2015 que acabará por prevalecer. O atual Governo alemão está extremamente empenhado no apoio aos ucranianos e em manter uma presença muito ativa da Alemanha nas migrações à escala global. Tenho confiança que essa orientação prevalecerá.
Num contexto de grande inflação e de estagnação do crescimento económico na Europa, será mais difícil angariar mais dinheiro para a questão das migrações ?
Já estamos hoje confrontados com essa realidade. As nossas operações no terreno já estão a sofrer os impactos. São muito adaptáveis, mas na nossa capacidade de ação , com preços de energia e alimentação a subir, aquilo que antes comprávamos para dar a dez pessoas, agora só conseguiremos provavelmente dar a oito. Isso é um fator de enorme preocupação já hoje no terreno.
Daqui a um mês temos a Conferência do Clima no Egipto, onde a questão do financiamento tem vindo a ser sucessivamente travada.
Ainda bem que pergunta sobre a questão do clima. Nos últimos anos vemos um aumento muito significativo da deslocação forçada por causa das alterações climáticas, talvez não muito visível nos meios de comunicação social. Em 2021, houve 23,7 milhões de pessoas que foram obrigadas a deslocar-se por causa de acontecimentos extremos do clima, das cheias aos ciclones, passando pela seca e pelos tufões. Isto toca a todos. Não são só os fogos florestais em Portugal ou na Califórnia, mas também eventos na América Central, na América do Sul, no sudoeste asiático ou nas ilhas do Pacífico, pela subida da água dos mares. A COP27 no Egipto tem que prestar atenção a esta situação. Reduzam-se as emissões para 2030, 2040 e 2050, perfeito. Mas não se esqueçam das pessoas que já hoje têm as suas vidas quotidianas profundamente afetadas a ponto de terem que sair dos sítios onde vivem historicamente por causa das alterações climáticas, via eventos extremos ou degradação ambiental progressiva como a salinização das terras ou a progressão do deserto.
Na realidade de Portugal, há também retóricas anti-imigração e casos pontualmente mais graves como o mais recente episódio em que um grupo alargado de timorenses que foram localizados no nosso Alentejo. Qual é a questão central para Portugal em matéria de migrações ?
Não me vou pronunciar sobre questões de política nacional. A OIM tem 174 estados-membros e falar sobre Portugal obrigaria a falar dos outros 173 países. A nossa preocupação, que não é exclusiva em relação a Portugal, é que muitos trabalhadores sazonais no sector agrícola aceitam condições de trabalho e de alojamento que não são minimamente condignas. Por isso a OIM investe muito em todos os países numa política de recrutamento ético. É necessário garantir que todos os trabalhadores tenham as mesmas condições que têm os trabalhadores autóctones. Isso por vezes é mais complexo quando se trata de trabalhadores sazonais, porque não se trata aqui de integração na sociedade de acolhimento uma vez que o próprio quadro mental desses trabalhadores está restrito no tempo. Isso exige a conjugação de políticas públicas, designadamente da inspeção das condições de trabalho, a par do envolvimento das autarquias locais para garantir que as condições de alojamento são condignas.
Em matéria de tráficos, vê os mecanismos europeus bem estruturados para esse combate de forma a evitar que estas redes coloquem estes imigrantes em situação de fragilidade como Portugal ou Espanha ?
Tenho uma má noticia sobre esse ponto de vista. A pandemia, com o fecho das fronteiras e os confinamentos, deu um grande impulso às redes de tráfico e passadores de imigração clandestina. A única forma para as pessoas se deslocarem era recorrendo a meios ilegais. Vejo isso com muita preocupação em todos os continentes. O combate ao tráfico de seres humanos exige a mobilização não apenas das autoridades de imigração, mas sobretudo as cooperações policial e judiciária.
Conhece bem essas políticas, como antigo comissário europeu dos Assuntos Internos.
As redes de tráfico são muito flexíveis. Mudam as rotas com muita facilidade, o recrutamento e a colocação nos locais de destino. Isso exige alguma especialização da investigação policial e penso que houve progressos na cooperação entre polícias no âmbito da União Europeia. No entanto não podemos eixar de constatar que o número de processos levados a tribunal e condenações correspondentes a trafico de seres humanos continua a ser uma gota de água no oceano. Há aí lacunas no sistema que têm que ser preenchidas. A OIM dedica-se sobretudo ao apoio e proteção das vítimas. É necessário que as vítimas colaborem com as autoridades para podermos detetar as rotas e não apenas os operacionais das redes clandestinas. Isto é um negócio. Está calculado que o tráfico de seres humanos renda como lucro para os traficantes algo que à escala global equivale ao lucro da venda de droga. É um negócio multimilionário que dá uma grande capacidade de financiamento, logística e manobra a essas redes para operarem. Normalmente os mandantes dessas redes estão nos países de destino e muitas vezes a capacidade de detetar as redes queda-se por aquilo que são os operacionais no terreno.
É uma pessoa muito próxima do atual secretário-geral das Nações Unidas. Não lhe vou pedir os estados de alma de António Guterres que foi ao mesmo tempo criticado e elogiado pela sua intervenção na guerra da Ucrânia, nomeadamente em domínios como os corredores humanitários e o abastecimento de cereais. Acha que Guterres tem sido injustiçado ?
Esta crise é muito peculiar. É uma ação militar que viola a Carta das Nações Unidas perpetrada por um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. A responsabilidade da garantia da paz e da segurança pelas Nações Unidas cabe ao Conselho de Segurança e o Secretário-Geral é um executante.
Penso que ele tem sido suficientemente claro e explícito não só na condenação da violação da Carta, mas também mostrando empenho na resolução de problemas que a crise ucraniana está a gerar fora da Ucrânia. Não devemos subestimar a importância deste último ponto. Estive recentemente na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque e pela primeira vez todos os países em vias de desenvolvimento da Ásia, da África e até da América Latina disseram-me que nunca tinham experimentado uma situação como esta em que uma guerra localizada e geograficamente distante tem um efeito devastador nos seus próprios países. Quando o Secretário-Geral levanta a voz em defesas dessas outras vítimas da guerra, que não as vítimas diretas ucranianas, está a cumprir uma função essencial das Nações Unidas.
Cumpre agora em Outubro 4 anos de mandato e fará 66 anos em Janeiro. A entrar no seu último ano nestas funções, está disponível para renovar o seu mandato até 2028 ?
A Renascença é o local apropriado para utilizar o cliché "o futuro a Deus pertence".