O presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra, José António Santos Cabral, considera que Portugal está “sem esperança por culpa das lideranças”.
O juiz conselheiro que já liderou a Polícia Judicária acusa, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, as lideranças de não terem "uma visão estratégica para o futuro do país”.
"Isso falha, nomeadamente, relativamente a dois sectores essenciais: falha relativamente aos pobres e falha relativamente aos jovens”, afirma.
Santos Cabral defende que “é tarefa do Estado tentar encontrar habitação para quem necessita dela" e sugere a criação de “politicas fiscais que incentivem o mercado de arrendamento”.
Para o presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra, a pobreza diminui nos últimos anos em Portugal, mas, ainda assim, há muita burocracia na estratégia de combate. “São tantos papéis e eu não gosto de burocracia”, desabafa.
Na guerra em curso na Faixa de Gaza, Santos Cabral responsabiliza o Hamas por ter iniciado o conflito com ataque de 7 de outubro, mas acusa Israel de não ter uma estratégia. “O que é que Israel vai fazer relativamente à faixa de Gaza quando tiver de a abandonar? E como é que vai abandonar? Será uma força das Nações Unidas que vai lá ficar?", questiona, respondendo de seguirda: "Israel não tem resposta."
O presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra não identifica nenhuma personalidade internacional com capacidade de mediar esta guerra, embora destaque os papéis que cumprem duas personalidades: “Penso que há duas entidades neste momento que se esforçam, realmente, por dar um pouco de lucidez neste mundo perplexo que nos rodeia, que são o Papa Francisco e o António Guterres. São duas vozes lúcidas."
Depois de múltiplos apelos à paz e à criação de condições humanitárias, o Papa Francisco insiste que “nada se resolve com a guerra” e defende a existência de dois estados na Terra Santa, Israel e Palestina. Onde e como está a falhar a comunidade internacional na procura de soluções para este conflito?
A comunidade internacional está a falhar neste conflito como está a falhar nestas últimas duas décadas. Se formos ver, o apelo à violência é uma constante, nas últimas décadas.
A intervenção da ONU, a intervenção da mediação internacional, tem diminuído constantemente, tem declinado. Em contrapartida, os conflitos ao redor do mundo têm aumentado exponencialmente. Vemos Nagorno-Karabakh, vemos a Ucrânia, vemos o Sudão, vemos a Etiópia, vemos agora o Médio Oriente... Os conflitos repetem-se. Há uma falha da comunidade internacional e, nomeadamente, da ONU. O papel da ONU e do Conselho de Segurança apagou-se e não há uma tentativa realmente de recuperar esse papel que é fundamental.
Quem é o grande responsável por isso? É o secretário-geral das Nações Unidas?
Não, de forma alguma. Aliás, eu penso que há duas entidades, neste momento, que se esforçam, realmente, por dar um pouco de lucidez neste mundo perplexo que nos rodeia, que é o Papa Francisco e é o António Guterres. São duas vozes lúcidas.
Mas, realmente, nós temos a pouca sorte neste momento. Quando olhamos para as lideranças a nível internacional, verificamos que são lideranças fracas, frágeis, de gente inconstante. Por exemplo, Israel. Israel teve primeiros-ministros como o Shimon Peres, como o Isaac Rabin, como a Golda Meir, inclusivamente. Hoje, tem o Netanyahu. Num momento que é crucial para a história de Israel, temos um homem que teve necessidade, para conservar o poder, de se aliar aos ultraortodoxos, conduzindo, de certa forma, a uma situação que vem a desembocar também naquilo que sucede hoje.
Portanto, eu diria que há aqui a responsabilidade de todos. Mas, indo concretamente ao caso do conflito presente, é evidente que tudo começa, sem estar a procurar explicações históricas, com um ato bárbaro por parte do Hamas, em 7 de outubro. Aliás, esse ato bárbaro repercute-se na manutenção da situação dos reféns e na utilização da população civil de Gaza como camuflagem da atividade do próprio Hamas.
Por seu turno Israel, na minha perspetiva, tem direito ao exercício de legítima defesa, mas esse direito de legítima defesa deve ser exercido de acordo com aquilo que são as leis da guerra.
Tem de haver proporcionalidade, não é?
É aquela questão da chamada "guerra justa". Quer dizer que tem de haver proporcionalidade nos meios, tem de haver uma intervenção militar, tem de haver a proteção das populações civis. É evidente que quando há um quartel-general ou uma instalação militar que está oculta no meio de civis, posso dizer que os fins justificam os meios. Não justificam. Atualmente, Israel é fortíssimo nisso e tem o Shabak, tem a Mossad, tem uma noção precisa dos riscos que tem uma operação militar. Quando pretendo atingir um determinado alvo e sei que com isso corro o risco de matar dezenas ou centenas de civis, tenho de ponderar e não aceitar esse risco.
Ao fim e ao cabo, tudo se reduz à questão do objetivo que eu pretendo atingir e ao custo que tenho para o atingir. E Israel está a falhar nesse aspeto. Penso que está, de alguma forma, a falhar na forma como as coisas estão a ser reconduzidas. O principal responsável das Nações Unidas na faixa De Gaza dizia que tinha visitado a região depois dos ataques e revelava que nas escolas administradas pelas Nações Unidas tinha encontrado crianças a suplicarem por água e por pão. Isto não é admissível. O abastecimento, a satisfação das necessidades básicas é algo de imperioso e é possível neste momento. Há centenas de veículos que estão à espera de entrar na faixa de Gaza...
Há aqui um aspeto interessante nesta questão, que penso que é pouco ventilado pela comunicação social, que tem a ver com o seu papel. É muito importante a comunicação social estar presente e também tem muita importância as imagens. Repare: no conjunto de massacres de que temos conhecimento, todos nos lembramos do massacre de populações civis, por exemplo, de Grozni, na Chechénia, do massacre dos Tutsi, no Ruanda... Falamos em milhentas situações em que as populações civis foram massacradas. A chegada da imagem do que se passa ou passou dá-nos outra proximidade, dá-nos outra compaixão perante o sofrimento alheio.
Falava, há pouco, da figura do Papa e do trabalho da ONU. Identifica alguma personalidade internacional com capacidade de mediar efetivamente esta situação de guerra?
Não. Não vejo. A não ser que haja uma aproximação de posições.
Os Estados Unidos continuam a ter um papel fundamental e há o papel que podem desempenhar os Estados Árabes moderados. Estamos a falar da Jordânia. A Arábia Saudita não é propriamente um Estado moderado, mas tem interesse em que não haja uma escalada na guerra. Mas há aqui um problema: Israel, que tinha de fazer alguma coisa, entrou em Gaza, mas já Kissinger dizia que quem entra numa guerra, quem tem uma estratégia para entrar numa guerra deve ter também uma estratégia para sair dela. E perguntamos "como é que Israel vai fazer relativamente à faixa de Gaza quando tiver de a abandonar? E como é que vai abandonar? Será uma força das Nações Unidas que vai lá ficar?"
A pergunta é exatamente essa: isso deve ser uma preocupação de Israel ou da comunidade internacional?
Acho que sim, acho que é fundamental, porque senão isto não tem fim.
Acho que a preocupação, neste momento, é, realmente, o dia seguinte. É encontrar uma solução, e essa solução pode passar pela colocação de uma força formada pelos Estados moderados, nomeadamente o Egito, a Jordânia... Pode ser uma solução; uma força de paz das Nações Unidas, mas nós não podemos esquecer que toda esta situação relativamente aos próprios ocupantes de faixa de Gaza vai ter uma consequência.
Na "Foreign Affairs", que é uma revista americana que segue estes assuntos, há um estudo, uma sondagem feita muito antes do conflito, feita em agosto, e é curioso que o Hamas não tinha a implantação que tinha, por exemplo, a Fatah. Isto é, o Hamas não tinha a maioria da população com eles. Aquilo que sucedeu agora, ou que está a suceder, vai colocar toda esta gente com um desejo de vingança, de ódio relativamente a Israel.
Esse é um ponto que queria colocar e que tem a ver com Portugal e com os discursos mais radicalizados sobre este conflito. Devemos estar preocupados com a radicalização do discurso também em Portugal? O que é que espera das autoridades nacionais sobre esta questão?
Espero ponderação e bom senso. Ponderação e bom senso. Nós somos um país que, historicamente, tem alguma tendência para conseguir aproximações, conseguir entendimentos, até porque não somos um país com ambições, pelo contrário, e neste conflito há grandes interesses. No mundo multipolar dos grandes interesses - China, Rússia e Estados Unidos - nós podemos ser aquela voz de entendimento, de bom senso. Aquilo que se está a verificar é que as pessoas estão a transpor a questão Israel/Hamas para a dicotomia esquerda/direita. Isto é, interpretam este conflito de acordo com as suas pré-convicções, com as suas convicções, com os seus estereótipos, o que não pode existir.
Verifica isso na sociedade em Portugal?
De alguma forma e em algumas franjas. Mas, por exemplo, há alguns comentadores, que eu ouço com regularidade, nomeadamente o António Barreto, e vejo uma procura de ponderação e de ver, realmente, o que está em causa e a tentar realmente descortinar o que está certo e o que não está. Porque aqui também há o bem e o mal e o bem e o mal não é algo que esteja só de um lado. Está dos dois lados, não é monopólio de um lado só, está dos dois lados.
Queria agora passar um pouco para a atualidade nacional esta nossa conversa. A Comissão Nacional de Justiça e organismos de 10 dioceses destacaram numa nota sobre a crise na habitação o impacto deste fenómeno na vida das pessoas, das famílias. Encontra janelas de esperança nas políticas que estão a ser adotadas ou entende que ainda estamos longe de responder verdadeiramente ao problema?
Que estamos longe, estamos. A situação no mercado da habitação modificou-se substancialmente desde 2015. Por acaso, estive a ver ontem um estudo acerca da evolução das condições da habitação e o custo da casa. O custo da habitação subiu cerca de 94% entre 2015 e 2022. Fomos o quarto país da Europa onde a habitação mais subiu.
Nós, a nível da doutrina social da igreja, a nível das comissões defendemos não só o direito à habitação como um direito essencial inerente à própria dignidade da pessoa, como também defendemos o direito de propriedade. Penso que esta procura da finalidade social e o tentar encontrar habitação para quem necessita dela é uma tarefa do Estado, também.
Mas é uma tarefa do Estado e também de todos nós. Isto é, o Estado tem de criar as condições para ele próprio, de uma forma direta, criar habitação social, habitação corporativa, criar condições fiscais. Dou-lhe um exemplo: a possibilidade de o arrendatário, até um certo montante, poder descontar no IRS, o montante da renda que paga. Porque é curioso verificar que, ao longo destes anos,, as pessoas procuraram, sobretudo, comprar casa e, muitas vezes, compraram habitação sem ter em consideração que a taxa de esforço que lhes vai ser exigida é demasiado elevada.
Penso que isto não sucederia se existisse um mercado de arrendamento a funcionar em condições de oferta e de procura. O que sucede é que o mercado de arrendamento também implodiu. Há muito menos casas para arrendar. É necessário que o Estado intervenha diretamente, criando condições, criando habitação, criando políticas fiscais que premeiem e incentivem a possibilidade de arrendar.
E como é que isso é possível? Nesta última década, quando a taxa de juro era muito baixa, era mais fácil comprar casa e pagar uma prestação do que estar a arrendar. Hoje, isso modificou-se substancialmente.
A conflitualidade entre Presidência e Governo sobre este tema também cria provavelmente ruído e dificuldade à adoção das melhores soluções?
Acho que sim, mas esta conflitualidade, para mim, são jogos de sombra chinesa. O que é necessário é que as nossas lideranças tenham uma visão estratégica para o futuro deste país. E eu penso que isso falha. Isso falha, nomeadamente, relativamente a dois sectores essenciais: falha relativamente aos pobres e falha relativamente aos jovens
Nós estamos a formar um país assimétrico, em que temos uma classe média que vai aguentando, temos gente que pode muito e temos uma larga camada da população que não pode ou que pode com muita dificuldade. Aliás, é curioso, ao olhar para a pobreza, verificar que muitos dos pobres, hoje, são gente que trabalha. Trabalha, mas não tem o suficiente para se conseguir aguentar.
E esta crise de inflação que estamos a viver vai acentuar mais essas desigualdades?
Sim, sim. A pobreza que temos é uma pobreza estrutural. Nós temos 20% da população que se pode considerar pobre. E seria muito mais se não houvesse as transferências sociais, isto é, os subsídios, as pensões. Seria muito mais grave. Temos um país estruturalmente desequilibrado e penso que é necessário criar esperança. Somos um país em que muitos de nós estão desesperançados.
Não dá esperança a recentemente aprovada Estratégia Nacional de Combate à Pobreza?
São tantos papéis, são tantos papéis... Eu não gosto de burocracia. Quando vejo muita estratégia, vejo as estratégias passadas e aquilo que elas deram e... Enfim...
Ainda assim, temos de ser justos, também. Nos últimos anos, a taxa de pobreza diminuiu. Pouco, mas diminuiu. E isso é fruto da estratégia, mas também é fruto do trabalho das instituições de solidariedade social. Se não fossem as instituições de solidariedade social...
Aqui em Coimbra, há uma instituição, que é a Cozinha Económica da Rainha Santa Isabel, que fornece refeições. E serviu, no ano passado, em setembro e outubro, mais de cinco mil refeições por mês. São estas instituições, realmente, que muitas vezes fazem a diferença. O Estado tem a expectativa de que a estratégia tenha algum sentido, mas, muitas vezes, as coisas ficam meramente no papel e não passam daí.
No momento em que fazemos esta entrevista, um conjunto de deputados entrega no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva da lei que despenaliza a eutanásia. Considera que ainda há questões por esclarecer nesta matéria?
As questões estão praticamente todas esclarecidas. Acompanhei o tema e, para mim, há uma questão que é básica, e que, por muitos rodeios que se façam, não está esclarecida: é que a Constituição garante o direito à vida. O direito à vida é um bem jurídico essencial. E a eutanásia não é. A eutanásia é o contrário disso, na minha opinião, na minha perspetiva, e essa questão não está respondida nos acórdãos do Tribunal Constitucional, nem sequer nas perguntas que o Presidente da República formulou, apesar de não ter visto ao pormenor o documento.
Essas perguntas não foram devidamente esclarecidas pelo Tribunal Constitucional?
Esta, em concreto, para mim, não foi devidamente esclarecida. É a contraposição entre aquilo que diz a Constituição e aquilo que representa a eutanásia. E tanto é assim que quem, efetivamente, tem por dever procurar defender a vida na doença, que são os médicos, na sua grande maioria opõe-se à eutanásia.
Depois, há uma questão aqui uma outra questão lateral, mas que tem de ser colocada: a nossa Assembleia da República decidiu aprovar a eutanásia, mas os cuidados prévios, os cuidados paliativos, a assistência realmente a quem está neste espaço terminal. Será que ela atingiu um expoente de excelência? Ou será que isso foi descurado, enveredando-se pela solução final da eutanásia?
Estamos a viver também na Saúde um momento de enorme crise, que potenciará situações de maior risco, não é?
Esta situação é um pouco o fruto de alguma falta de visão estratégica na condução do país. Porque, vamos lá ver, não é só a questão dos médicos, que é uma questão que se arrasta. Esta questão está relacionada com todas as carreiras profissionais da administração pública. A administração pública engrossou substancialmente nos últimos anos. Em dois anos, penso que foram admitidos mais de 15 mil funcionários públicos.
Nós temos um Estado que tem de satisfazer as necessidades e tem uma série de profissões e de ordens e de corporações à volta, não podendo atuar sectorialmente relativamente a cada uma. Tem que haver uma visão estratégica, de como é que nós vamos tratar o conjunto de pessoas que estão na administração pública, sabendo nós que isto é um Estado pesado e que só consegue subsistir com um peso fiscal enorme, que nos atrapalha e que nos corta o crescimento. Tem de haver uma visão global. Nós tratamos agora a questão dos médicos, mas esta falta de visão estratégica refletiu-se logo quando se diminui as horas de trabalho para toda a gente.
Lembro-me que, na altura, o senhor Presidente da República disse que promulgava o diploma, mas revelou que se isso tivesse custos económicos, se arrogava no direito de voltar a ver o assunto. Os custos económicos estão aí, são manifestos. E, todavia, não houve mais ninguém que se pronunciasse. Não há coragem política para agora estar a dizer "olhe não podem ser 35 horas de trabalho, mas são 40". Isto parece um pouco aquilo que eu lhe disse há pouco: neste momento, temos uma parte da nossa sociedade que vai tentando retirar do Estado o máximo que pode. Temos muita gente que tenta sobreviver e lutar contra as adversidades, entre as quais muitas empresas, e, depois, temos muita gente que vive de uma forma a raiar a sobrevivência. Tudo isto tem de ser repensado e reformulado. O país que temos neste momento é um país em que há muita desesperança. Portugal é um país sem esperança e isto prende-se necessariamente com as lideranças.